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+ música
Radicada nos EUA, a regente e compositora cubana Tania León desconstrói os
ritmos populares de seu país, revividos por grupos como Buena Vista Social Club
FOLCLORE DISSONANTE
Augusto de Campos
especial para a Folha
Quando escrevi, em artigos anteriores, sobre algumas raras
compositoras da modernidade
musical reveladas no fim do século passado, das pioneiras americanas
Ruth Crawford e Johanna Magdalena
Beyer à octogenária russa Galina Ustvólskaia, não tinha ainda notícia da cubana Tania León. Quem vir as suas fotografias publicitárias vai certamente achar
que se trata de uma atriz de cinema ou de
uma cantora. Seu nome, aliás, empata letricamente com o da celebrada Célia
Cruz. Não, Tania León, beldade negra,
não é nada disso, mas -pasmem!-
uma compositora e regente de música
contemporânea.
Nasceu em 1943 em Havana e, pianista
clássica formada, viajou em 1967 com
uma bolsa de estudos "lotérica" para os
EUA, onde se fixou, sem ser uma fugitiva
do regime de Fidel ou uma opositora dele. Segundo diz, queria simplesmente
aperfeiçoar-se em sua arte e, como o
contexto certo eram os EUA, para lá se
foi, sem ser incomodada.
"Quando deixei Cuba -afirma em
uma entrevista a Frank J. Otteri (1999)-
eu era apenas uma estudante de conservatório e não constituía uma ameaça para ninguém. Eu era invisível." Só voltou
em 1979 para rever a família, que continua a visitar periodicamente, via Cancun. Não sabe se sua música terá sido alguma vez executada em Cuba, onde
nunca tocou ou regeu suas composições,
embora já o tenha feito inúmeras vezes
na Europa e nos EUA.
Cubana ou norte-americana? "Considero-me uma compositora americana
-diz ela-, as Américas abrangem a
América do Norte, a América Central, a
América do Sul e o Caribe." Política?
"Não sou um animal político", afirma
numa outra entrevista (a Ronald de Feo),
"minha posição política é respeitar a humanidade, não separar as pessoas pela
raça, tradição ou sexo". O interessante é
que, apesar de obviamente afro-cubana,
ela recusa esse binômio conceitual para
definir-se como pessoa e como ente musical. Afirma que tem sangue cubano, espanhol, francês e chinês (seu avô paterno
era sino-cubano) e uma vocação naturalmente multicultural, originária de sua
imensa curiosidade pelo desconhecido.
E estende essa consideração à própria
música tida como cubana, onde encontra ritmos de mais de uma região africana, não apenas de ascendência nigeriana,
mas igualmente forte influência hispano-arábica, além de traços ameríndios e
chineses.
Boulez e Stockhausen
"A música cubana é totalmente sincrética, de muitos estilos e culturas", afirma. Aos 4 anos já estava no conservatório aprendendo
música erudita, pela qual revelara incomum interesse ouvindo rádio. Supõe
que se interessara por ela por ser diferente de tudo o que comumente ouvia.
"Meu coração curioso", "minha mente
curiosa", são expressões que ela usa para
definir-se.
Mas tocava Lecuona e os standards populares da época e estava a par de todo o
repertório musical recentemente revivido pelos velhos mestres do Buena Vista.
"Posso cantar e tocar tudo o que o Buena
Vista Social Club está fazendo porque é o
que eu cresci ouvindo e cantando e dançando. Era a música da minha vizinhança. Eu poderia usá-lo em minha música.
Mas transformado. As pessoas daqui,
porque sabem de onde eu sou, poderiam
dizer que é música "cubana", mas ela poderia não ser "cubana" em Cuba."
Sua carreira profissional começou
quando foi convidada, em 1969, pelo coreógrafo Arthur Mitchell a integrar o
Dance Theatre of Harlem, do qual foi arranjadora e diretora musical, antes de
experimentar a composição. Sua curiosidade e despreconceito a levaram a interessar-se pelas obras mais complexas da
música contemporânea, como as de
Boulez, Stockhausen e Elliot Carter, ou
pelo estudo da "tabla" (intriga-a o comprimento da frase na música indiana).
Mas, chegando nos EUA, teve o primeiro grande choque musical ao ouvir o
pianista Art Tatum, que, diga-se de passagem, também foi muito admirado pelo
desconstrutor das pianolas, o grande
músico mexicamericano Conlon Nancarrow (este, ao contrário, deixou os States pelo México).
Uma característica das composições de
Tania León, a julgar pelo seu único disco
solo, "Indígena" (CRI #CD 662), editado
em 1994, é o ritmo, poderoso e inconvencional. As "raízes" cubanas aparecem,
aqui e ali, mas ou atravessam a obra em
citações arrevesadas ou em elaborações
percussivas que soam como construções
inteiramente novas. Em suas entrevistas, não a vi mencionar Amadeo Roldán, o
compositor cubano que muitos consideram precursor de Varèse com as suas
descarnadas "Rítmicas" todo-percussivas (1930), não obstante a marca dos ritmos convencionais. Parece-me um elo
pertinente, mesmo que ele possa não ter
influenciado a compositora, pouco divulgado como é, dentro e fora de Cuba.
O disco solo a que me refiro traz cinco
composições, dominadas por ritmos
agressivos, aqui e ali denotando algum
vínculo com o folclore cubano, mas nunca apresentadas folcloricamente, transmudadas em ferozes polirritmias de
acentos deslocados e imprevistos, muito
distantes da regularidade pulso-dançante da música popular: "Indígena" (1991),
para orquestra de câmara, "Parajota Delaté" (1988), para conjunto de câmara,
"Rituál", para piano solo (1987), "A La
Par" (1986), para piano e percussão; sem
destoar propriamente das outras, "Batéy" (1989), para coro de seis vozes e percussão, é um caso à parte, por se tratar de
música escrita em conjunto com Michel
Camilo. "Indígena" e "Batéy" são regidas
pela própria Tania León.
Na composição "Indígena", a mais nova dentre as registradas, em meio a crescentes misturas de ritmo e de pulso em
contexto harmônico dissonante, emergem frases carnavalescas puxadas por
um trumpete desentoado -ecos da
"comparsa", música dançante do carnaval cubano, da qual uma só, "La Jardinera", é breve mas literalmente citada, segundo esclarece o crítico K. Robert
Schwarz, para logo submergirem, desconstruídas, nos arrancos rítmicos desencontrados que dominam a obra. "Rituál" traz à mente algo da russa Ustvólskaia pelos "ostinatos" e pelo uso da tessitura do piano, que obriga o instrumento
a alternar seus ritmos do mais grave ao
mais agudo em largos intervalos.
Ioruba
Mais colorida, "A La Par" se
deixa invadir por uma variedade de ruídos percussivos, que se contrapõem ao
piano em truncadas linhas paralelas e
acabam por envolvê-lo nas angulosidades de suas explosões, interrompidas pela citação dos compassos congelados de
uma rumba, até o engolfarem em apaziguantes ressonâncias vibrafônicas. Na
mais lírica das composições, "Parajota
Delaté" (para J. da T.), homenagem natalícia de Tania León à compositora Joan
Tower, as pulsões rítmicas são atenuadas
em favor de maior fluidez instrumental,
para as intervenções ondulantes de sopros (flauta e clarinete), violino e violoncelo, que apenas sugerem, num contexto
harmônico atonalizante, um arroubo
melódico que não chega a acontecer. Tudo se passa num ambiente ultramodernista, lembrando, em linguagem atualizada, a fase mais inventiva de Villa-Lobos -a dos "Choros" e do esplêndido e
sonegadíssimo "Noneto". A última obra
do disco, "Batéy" (1989) -espécie de
cantata, em parceria com Michel Camilo,
talvez a mais comunicativa das composições- tenta um difícil equilíbrio entre a
linguagem marcadamente discursiva e
tonal de Camilo e a mais aventuresca e
experimental de Tania León. O pianista e
compositor dominicano Michel Camilo
(1954), figura exitosa do que chamam de
"latin jazz scene", parece mais interessante nesse âmbito do que no da música
clássica contemporânea, ao que também
se espraia, mas onde seu conservadorismo concertístico mostra-se muito defasado. O risco foi assumido voluntariamente e -digamos- com generosidade por Tania León. Até que conseguem
um compromisso razoável.
Mas o estilo da compositora logo se
evidencia nas partes mais ousadas -as
intervenções de um e de outro estão autoralmente demarcadas- que são as
que ela assina: algumas passagens iorubas de "Ritos", num contraponto de palavras entrecortadas à maneira de "hochetus" medieval (do francês, "hoquet"
= soluço), sílaba e silêncios das várias vozes se interceptando num enredo complicado; as canções "a capela" de "Rezos", com um impossível solo vocal grave-agudíssimo para contratenor, e "Tarura" (em "scat singing"). O texto
-uma mistura colageada e fragmentária de espanhol, cubano e ioruba- quer
homenagear [o líder negro Martin" Luther King na única palavra inglesa que
contém ("Dream") e traz esta reminiscência afetiva da infância cubana da
compositora: "Llevo dentro del corazón/
la buena drume/ negrita dru...". A latino-americanidade implícita e ritualística
junta essas peças de linguagem musical
um tanto díspar, onde se sobressai a
maior criatividade de Tania León.
Indagada por Frank J. Oteri sobre sua
forma de compor, se sua música é dodecafônica, se usa técnicas seriais, ela desconversa, dizendo que não tem idéia de
como suas composições podem ser codificadas ou classificadas, que assimila
uma grande quantidade de informações
e se espanta com o que os musicólogos
encontram em suas criações, que, a seu
ver, estão em constante movimento e
evolução.
Resta conferir as numerosas outras
obras da compositora pancubana, que
somam, numa recente listagem, mais de
40, incluindo a ópera "A Scourge of Hyacinths" (Um Flagelo de Jacintos), baseada numa peça radiofônica de Wole Soyinka, encomendada em 1994 pela Bienal
de Munique e que, com montagem e cenários de Robert Wilson, teve diversas
apresentações na Europa e no México, a
partir da estréia em Genebra em 1999.
Pelo que se ouve em seu disco, não há a
menor dúvida quanto aos méritos de Tania León. Enquanto não conhecemos, a
não ser pela rica amostragem de "Indígena", o conjunto de sua produção, só cabe
esperar que o sucesso não tenha transformado a bravura das surpreendentes
composições que se enfeixam nesse álbum e nos revelam mais uma compositora à esquerda da esquerda.
Onde encomendar
CDs de Tania León podem ser encomendados no
site www.barnesandnoble.com
Augusto de Campos é poeta, crítico tradutor e
ensaísta. É autor de "Música de Invenção".
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