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O cheque em branco da mente
Em "Tábula Rasa", o cientista cognitivo norte-americano Steven Pinker
critica a idéia recorrente de que o ser humano é moldado por sua experiência
Simon Blackburn
especial para a "New Scientist"
A tábula rasa do título do livro de
Steven Pinker é o "papel em
branco destituído de caracteres
ou idéias" ao qual o filósofo John
Locke [1632-1704] compara a mente
quando esta, em seu estado original,
aguarda passivamente que a experiência
lhe forneça os materiais da razão e do conhecimento. Numa generalização que
vai muito além das intenções do próprio
Locke, tal comparação induz à idéia de
que, antes de ter início a jornada da vida,
a mente não possui faculdades nem inclinações próprias.
Gottfried Leibniz [1646-1716] e David
Hume [1711-76], para mencionar só dois
de seus críticos, expuseram a fragilidade
do argumento ao indicar que a mente
-ou o cérebro- precisa dispor, no mínimo, da capacidade de se aplicar sobre o
que quer que a experiência nos forneça.
No entanto, segundo o messiânico livro
de Pinker, a noção ainda subsiste, com
freqüência atrelada (de maneira inconsistente) à convicção romântica de que a
mente vazia é intrinsecamente nobre e
que a violência, a agressividade e até
mesmo a falta de senso de humor ou a
insensibilidade auditiva são a conseqüência de pais irresponsáveis, ambiente
impróprio ou outros problemas de ordem cultural ou social.
Pinker acredita que isso dá margem a
todo um conjunto de equívocos práticos,
incluindo programas políticos utópicos,
projetos insensatos de engenharia social,
programas educacionais otimistas e
pontos de vista ridículos sobre questões
de gênero. Em sua crítica, ele mobiliza as
mais modernas das ciências, com destaque para a neurociência, a genética, a
teoria da evolução e, em particular, a psicologia evolutiva.
Teorias de gabinete
"Tábula Rasa"
é brilhante em vários aspectos. É um livro agradável, informativo, claro, humano e sensível. Pinker tem consciência das
emoções e auto-enganos que rodeiam a
ciência da natureza humana e passa em
revista um grotesco elenco de vilões, do
behaviorista B.F. Skinner ao psicólogo
Jerome Kagan. Não é fácil ser moralmente sensível quando se desmancham os
sonhos das pessoas. Mesmo assim, Pinker dá conta do recado sem jamais abrir
mão de enfatizar que os que nutrem ilusões a respeito da boa moral e da boa política precisam reconhecer a verdade sobre os seres humanos e vê-los como eles
são, não como gostariam que fossem.
Poder-se-ia dizer que o mote político do
livro é o comentário que certa vez E.O.
Wilson fez sobre Karl Marx: "Teoria maravilhosa. Espécie errada".
Tudo isso é correto e muito apropriado. Será, contudo, justificável a ilimitada
deferência que Pinker reserva às novas
ciências da mente e do cérebro? Em tom
retórico ele afirma: "Todo estudante de
ciência política aprende que as ideologias políticas se baseiam em teorias sobre
a natureza humana. Mas por que baseá-las em teorias que estão desatualizadas
há 300 anos?".
Não obstante, no capítulo que dedica
aos conflitos e à violência, Pinker se
apóia explícita e quase exclusivamente
nas idéias de Thomas Hobbes [1588-1679]. O mesmo acontece com seus perspicazes comentários sobre a ganância
humana e o status, fundamentados em
teses dos economistas políticos Adam
Smith [1723-90] e Thorstein Veblen
[1857-1929]. Pinker contrapõe a verdadeira ciência às teorias "de gabinete".
Acontece que a maior parte dos esforços
de teorização tem lugar em gabinetes, e
autores como os mencionados acima foram talentosos observadores da natureza humana muito antes de se recolherem
a seus gabinetes para elaborar teorias.
Consensos opostos
Uma leitura
atenta do livro revela que as contribuições da teoria da evolução, da psicologia
evolutiva e da neurociência são pequenas ou controversas. Por exemplo: Pinker sustenta haver amplo consenso entre
os especialistas de que a exposição à violência exibida pela mídia não torna as
crianças mais violentas. Ora, eu li o livro
logo depois de ter participado de uma
conferência sobre "direito e natureza humana", durante a qual se afirmou, com
igual dose de convicção, que o consenso
entre os especialistas em relação a esse
assunto é exatamente o oposto do mencionado por Pinker.
É evidente que mensurar o que pensam os especialistas é tão difícil quanto
mensurar qualquer outra coisa. Não é diferente quando se trata de evolução e psicologia. Pinker aborda com clareza extraordinária a distinção entre mecanismos evolutivos subjacentes (genes egoístas) e mecanismos psicológicos adjacentes (motivações manifestas, como luxúria ou inveja, altruísmo ou malícia). No
entanto é necessário apreciar o grau de
liberdade que a evolução deixa a esses
mecanismos, uma vez que em política e
educação tentamos influenciá-los para
melhor. E, se desejamos saber mais sobre
isso, é provável que Hobbes e Tolstói ainda sejam melhores guias do que a Associação Americana de Psicologia.
Simon Blackburn é professor de filosofia na Universidade de Cambridge (Reino Unido).
Tradução de Alexandre Hubner.
Tábula Rasa
672 págs., R$ 57,00
de Steven Pinker. Trad. Laura Teixeira Motta. Cia.
das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 32, CEP
04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3707-3500).
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