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Ponto de fuga
A poeira do humano
O filme "O Prisioneiro da Grade de Ferro" começa
com implosões de edifícios que compunham a penitenciária do Carandiru. Essas destruições tiveram um papel estratégico: significariam a virada de uma página, e
os horrores daquele presídio, que culminaram num
massacre, teriam deixado de existir. A vergonha havia
sido apagada e as boas consciências podiam dormir
tranqüilas.
Porém, nesse prelúdio, o diretor Paulo Sacramento
faz com que as cenas sejam projetadas ao contrário. Os
prédios se erguem do pó, reconstituindo-se num passe
de mágica. O sentido simbólico prolonga-se então. O
que é mostrado depois, ao longo do filme, não são curiosidades pitorescas próprias de uma época bárbara ou
coisas horríveis que pertencem ao passado. Saindo do
cinema, o pesadelo persiste, porque do que se viu nada
ficou para trás.
Não que o filme impressione pela brutalidade. São
poucas as imagens violentas; elas aparecem, rápidas e
sem insistência: cadáveres nus de presos assassinados,
mas em fotografias tiradas pelos próprios detentos, o
que lhes confere a distância de documentos; e misérias
físicas no atendimento médico, algumas horrendas.
Emana do filme outra coisa: um abominável abandono. A prisão é um depósito de lixo. Esse lixo são os homens. Na sordidez, eles conseguem organizar-se. Muitas de suas atividades mais importantes acham-se fora
da lei: o comércio, a prostituição, o tráfico de drogas, a
fabricação de cachaça e de armas brancas. Que elas possam ocorrer sem grande disfarce é sinal que ninguém se
importa nada com o que se encontra ali.
Calabouço - "O Prisioneiro da Grade de Ferro" mostra
um psicólogo entrevistando um preso. Situação crucial,
pois dela depende que o detento possa ou não gozar de
semiliberdade. A interrogação, feita em atropelo, consiste na leitura de perguntas caricaturais. Em poucos
minutos o pedido é recusado.
Fora o próprio confinamento, nenhum outro propósito da instituição parece ir muito além da paródia.
Uma das autoridades entrevistadas formula bem: aqueles homens estão lá somente para serem isolados. A escória não desperta interesse algum. Trata-se de um refugo, e nisso pode-se perceber a coerência da matança
que aconteceu no Carandiru. O filme não a enfoca, mas,
num certo sentido, esboça seus pressupostos. Maus elementos abandonados a si próprios: que eles existam ou
sejam suprimidos, não faz diferença. A tremenda chacina encontra-se na mesma lógica do lixo e do refugo;
apenas, seu caráter agudo irá provocar fortes reações de
escândalo. Um erro de dosagem, talvez.
Cadeado - "O Prisioneiro da Grade de Ferro" informa
pouco sobre a história individual dos presos; só permite
intuir, aqui e ali, alguns fragmentos dispersos. Mas capta, com força, a humanidade de cada um. Mais ainda,
nos diz que há, em cada crime, razões e motivos a serem
compreendidos para além da justiça e do julgamento.
Permanência - Sacramento declara em "Contracampo
- Revista de Cinema" (www.contracampo.he.com.br):
"Independentemente do partido que está no poder, das
pessoas que estão ali, das preferências pessoais, das trajetórias políticas, do investimento maior ou menor de
um governo, de um respeito maior ou menor aos direitos humanos... O que salta aos olhos é que a médio ou
longo prazo só sobra a falência do sistema, a sua impossibilidade de existir, independentemente do governo
ser de um partido ou de outro, de direta ou de esquerda.
(...) Além desse dado fundamental, tem um outro dado
ainda mais fundamental, de foro íntimo meu, de não fazer um filme que seja situado como "esse filme foi feito
numa época em que se demoliu um presídio", e sim "esse filme foi feito numa época em que se construíam dezenas de presídios". Isso é motivo de orgulho para o governador, e é uma coisa bastante chocante quando algumas pessoas pensam na demolição do Carandiru como uma página virada na nossa história, sem pensar
que o que foi demolido foi um prédio e que aquelas
7.500 pessoas não foram demolidas junto com ele, elas
foram transferidas para outros presídios (...)".
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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