São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004

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Ponto de fuga

A poeira do humano

O filme "O Prisioneiro da Grade de Ferro" começa com implosões de edifícios que compunham a penitenciária do Carandiru. Essas destruições tiveram um papel estratégico: significariam a virada de uma página, e os horrores daquele presídio, que culminaram num massacre, teriam deixado de existir. A vergonha havia sido apagada e as boas consciências podiam dormir tranqüilas.
Porém, nesse prelúdio, o diretor Paulo Sacramento faz com que as cenas sejam projetadas ao contrário. Os prédios se erguem do pó, reconstituindo-se num passe de mágica. O sentido simbólico prolonga-se então. O que é mostrado depois, ao longo do filme, não são curiosidades pitorescas próprias de uma época bárbara ou coisas horríveis que pertencem ao passado. Saindo do cinema, o pesadelo persiste, porque do que se viu nada ficou para trás.
Não que o filme impressione pela brutalidade. São poucas as imagens violentas; elas aparecem, rápidas e sem insistência: cadáveres nus de presos assassinados, mas em fotografias tiradas pelos próprios detentos, o que lhes confere a distância de documentos; e misérias físicas no atendimento médico, algumas horrendas.
Emana do filme outra coisa: um abominável abandono. A prisão é um depósito de lixo. Esse lixo são os homens. Na sordidez, eles conseguem organizar-se. Muitas de suas atividades mais importantes acham-se fora da lei: o comércio, a prostituição, o tráfico de drogas, a fabricação de cachaça e de armas brancas. Que elas possam ocorrer sem grande disfarce é sinal que ninguém se importa nada com o que se encontra ali.

Calabouço - "O Prisioneiro da Grade de Ferro" mostra um psicólogo entrevistando um preso. Situação crucial, pois dela depende que o detento possa ou não gozar de semiliberdade. A interrogação, feita em atropelo, consiste na leitura de perguntas caricaturais. Em poucos minutos o pedido é recusado.
Fora o próprio confinamento, nenhum outro propósito da instituição parece ir muito além da paródia. Uma das autoridades entrevistadas formula bem: aqueles homens estão lá somente para serem isolados. A escória não desperta interesse algum. Trata-se de um refugo, e nisso pode-se perceber a coerência da matança que aconteceu no Carandiru. O filme não a enfoca, mas, num certo sentido, esboça seus pressupostos. Maus elementos abandonados a si próprios: que eles existam ou sejam suprimidos, não faz diferença. A tremenda chacina encontra-se na mesma lógica do lixo e do refugo; apenas, seu caráter agudo irá provocar fortes reações de escândalo. Um erro de dosagem, talvez.

Cadeado - "O Prisioneiro da Grade de Ferro" informa pouco sobre a história individual dos presos; só permite intuir, aqui e ali, alguns fragmentos dispersos. Mas capta, com força, a humanidade de cada um. Mais ainda, nos diz que há, em cada crime, razões e motivos a serem compreendidos para além da justiça e do julgamento.

Permanência - Sacramento declara em "Contracampo - Revista de Cinema" (www.contracampo.he.com.br): "Independentemente do partido que está no poder, das pessoas que estão ali, das preferências pessoais, das trajetórias políticas, do investimento maior ou menor de um governo, de um respeito maior ou menor aos direitos humanos... O que salta aos olhos é que a médio ou longo prazo só sobra a falência do sistema, a sua impossibilidade de existir, independentemente do governo ser de um partido ou de outro, de direta ou de esquerda. (...) Além desse dado fundamental, tem um outro dado ainda mais fundamental, de foro íntimo meu, de não fazer um filme que seja situado como "esse filme foi feito numa época em que se demoliu um presídio", e sim "esse filme foi feito numa época em que se construíam dezenas de presídios". Isso é motivo de orgulho para o governador, e é uma coisa bastante chocante quando algumas pessoas pensam na demolição do Carandiru como uma página virada na nossa história, sem pensar que o que foi demolido foi um prédio e que aquelas 7.500 pessoas não foram demolidas junto com ele, elas foram transferidas para outros presídios (...)".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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