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+ brasil 504 d.C.
RELAÇÃO CENTRO-PERIFERIA DETERMINA LUGAR DO FORASTEIRO NA ORDEM MUNDIAL
E MINIMIZA VARIANTES SOCIOECONÔMICAS
A TERRA NÃO É REDONDA
Luiz Costa Lima
A partir das últimas décadas do século 20, tornou-se frequente a
referência à globalização do
mundo. Embora a expressão originalmente tivesse um significado apenas econômico, logo assumiu maior extensão: também à cultura se propiciaria
um alcance global. Antes mesmo de a
questão estar bem divulgada, um posicionamento positivo era exposto, em
1993, por Carlos Rincón, ensaísta colombiano e professor na Alemanha: "Na
América Latina, o fenômeno de maior
relevância cultural nos anos 1980 foi a
mudança na vida social provocada pela
introdução de novas tecnologias eletrônicas nos "mass media" (...). Ao mesmo
tempo, as sociedades latino-americanas
eram percebidas como parte de um mercado cultural no processo de industrialização e globalização. (Daí) o surgimento
de culturas urbanas sem memória territorial, agora diretamente enlaçadas aos
meios audiovisuais".
A aludida reconfiguração provocaria
duas consequências: (a) enquanto fundada na idéia de unidade, "a nação é um
modelo social que simplesmente não se
adapta aos começos do século 21"; (b)
"em nossos dias, o tradicional e o moderno já não são opostos entre si e a divisão
entre alta cultura, cultura popular e cultura industrial (como categorias exclusivas e fechadas) não tem sentido". Tais
mudanças ensejariam uma mais séria: a
oposição entre centro e margens -cujo
cume coincidira, entre o final do século
19 e o começo do 20, com o alto modernismo- teria perdido a validez, as "correntes do capital cultural" pondo no
mesmo nível as produções culturais quer
do centro, quer das margens.
Otimismo descabido
As conclusões parecem demasiado apressadas, sobretudo quando seu autor afirma a ultrapassagem da oposição entre alta cultura
e meios audiovisuais. Essa oposição, diria de minha parte, assume significados
diversos, conforme a encaremos do ponto de vista do centro ou da periferia. No
centro, a chamada alta cultura mantém
condições de produção e circulação; na
periferia, sua sobrevivência se torna cada
vez mais rala, arrastada pelo arruinamento das instituições universitárias. O
otimismo de Rincón é descabido: a desarticulação de uma cultura exclusivamente letrada provocou, na verdade,
uma relativa abertura para a produção
cultural das margens -os exemplos básicos de Rincón são os romances de García Márquez e a telenovela brasileira.
Mas o resultado é paradoxal: ao passo
que a facilidade dos meios de reprodução permite que um membro da alta cultura -a ficção de García Márquez-
passe a estimular a ficção de centro e periferia, na própria periferia o estímulo se
concentra no cinema comercial, que explora a la Hollywood as misérias locais, o
romance documental e os seriados da
TV. A mudança tecnomercadológica
apenas parcialmente reconfigura a oposição entre centro e periferia. Quanto às
manifestações de alta cultura na área periférica, as debilita e ameaça reduzi-las à
insignificância.
Para testar a refutação, parto de um pequeno ensaio do sociólogo Alfred
Schütz. Em "The Stranger" (1944), ele se
propunha como questão: que peculiaridade apresenta a conduta do forasteiro
que procura interpretar o padrão cultural de um grupo outro a que tenta se integrar? Para Schütz, o forasteiro se depara
com a exacerbação do que cada homem
encontra no cotidiano. Neste, somos
guiados por padrões incoerentes, só parcialmente claros e não isentos de contradições. Assim sucede porque o indivíduo
comum não está interessado em buscar a
verdade e em se indagar pelo que seria
certo. "Como pai, cidadão, empregado,
membro de uma igreja, o indivíduo pode
ter as opiniões mais diversas e incongruentes, em matéria de moral, política e
economia."
Na vida cotidiana, o homem tem por
meta "pensar (e agir) como sempre se
fez". O que significa tentar conservar o
estoque de "receitas" a que, desde que
possível, sempre recorrerá. A dificuldade
então que o forasteiro encontra resulta
de seu receituário não se ajustar ao do
grupo outro. "Como túmulos e lembranças não podem ser transferidos nem
conquistados", estabelece-se um hiato
inelutável entre o forasteiro e o grupo
outro. A situação ainda seria contornável
se as "receitas" próprias e alheias pudessem ser traduzidas em palavras. Isso é
impossível, pois as palavras do "receituário" integram molduras ("frames"), isto
é, têm uma coloração afetiva que os dicionários não consignam. Eis a dificuldade que o forasteiro só vencerá ao substituir as suas pelas receitas do grupo a que
então terá se integrado.
O calcanhar-de-aquiles que encontro
em "O Forasteiro" está em o autor não
considerar de onde vem o forasteiro e em
que lugar se encontra o grupo outro.
Afirmar o dilema do forasteiro sempre
idêntico equivale a considerar que a terra, de fato, é redonda. Socialmente, não o
é. Há de se distinguir se o forasteiro e o
grupo outro pertencem a uma sociedade
central ou periférica. Simplifiquemos ao
máximo a reflexão, perguntando-nos
não sobre a atitude do eventual forasteiro, mas pelas expectativas do grupo outro quanto a alguém ou um produto de
fora. A mudança de ótica então permite
que se trate de lugares centrais ou periféricos. Definimos um lugar como central
ou periférico em razão de duas variáveis:
(1) trata-se ou não de um lugar integrado
a uma situação socioeconomicamente
estável; (2) da qual decorre um sentimento de confiança ou insegurança
diante de seus valores e "receitas".
Conquistas intelectuais
Ainda
que fosse preciso pensar a relação entre
as duas variáveis, limitemo-nos a dizer
que (2) não é um mero corolário de (1).
Como nos mostraria o exame da Alemanha durante a República de Weimar
(1918-1933), pode faltar a estabilidade socioeconômica sem que se abale o sentimento de confiança. Em Weimar, este se
mantinha com base nas conquistas intelectuais passadas, que então alimentavam a extraordinária inventiva do período. Por mais delicado que seja o exame
das relações entre as duas variáveis, temos de nos contentar com essa explicação tosca. Distingamos pois como se caracterizariam a produção e a recepção
culturais a partir de um lugar central.
Para alguém que cresceu e se formou
em um lugar central, a socialização se
processa sob a confiança na eficácia das
molduras internalizadas. O que vale dizer, para o indivíduo central as "receitas"
e os valores aprendidos podem ser empregados sem discussão. Daí resulta a
primeira maneira de operar no cotidiano, quer com os outros membros do
mesmo grupo, quer com os estranhos.
Essa maneira, no limite, se caracteriza
pela automatização das receitas-moldura. Ela se atualiza pela suposição de que,
em todas as partes do mundo, lhes será
suficiente o uso de sua língua e o reconhecimento da qualidade de seus padrões de conduta e apresentação. As redes de turismo respondem à expectativa
de seus clientes e oferecem "resorts" a tal
ponto duplicadores dos critérios de excelência que, se tudo funcionar bem, no
fim das férias o cliente terá a sensação de
haver viajado sem viajar. A automatização da conduta provoca o resultado paradoxal da neutralização da diferença: a
mesmidade do mundo. Isso vale tanto
para turistas como para scholars.
A segunda maneira de atuação do
agente central é radicalmente distinta. E
já não poderá ser integrada no conceito
de "receita". Seja por efeito do etos da
atividade exercida, seja por vicissitudes
de sua biografia, o agente central se torna
consciente do significado de suas respostas automatizadas. Sofre o que se poderia
chamar uma epifania leiga. Em vez de
automatização, teremos uma conduta
caracterizada pela exploração dos limites
dos valores internalizados. Seria aqui interessante exemplificar com "Morte em
Veneza" (1912), de Thomas Mann. Limitemo-nos a notar: ameaçado de impotência, Aschenbach abandona o reconhecimento que o cerca e se lança contra
as molduras que reprimiam sua homossexualidade. Para isso, escolhe um lugar
de risco: Veneza, com suas águas pantanosas. Lê-se mal a atração dionisíaca que
sofre, sem tampouco renunciar à interdição de uma proximidade física maior
com o jovem Tadzio, se a interpretamos
como marca do esteticismo do autor.
Em um só exemplo, temos comprovada a imitação dos periféricos e a manutenção de receitas automatizadas por um pensador do porte de Adorno
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Exploração dos limites
Escolhendo não fugir da peste que assola a cidade,
o protagonista ratifica sua opção por
eros, ao mesmo tempo em que impede
que a assunção de eros transtorne sua
identidade "legalizada". Ou seja, explora
os limites do valor atribuído à identidade
sexual sem que deixe de respeitá-la. Há
exploração de limites, e não o seu transtorno. Mas a exploração pode ser muito
mais radical. Joyce ou Beckett seriam
seus protótipos. A exploração mais extrema sempre mantém alguma parcela
do estabelecido. Pois, como logo veremos, é essa manutenção de parte dos valores estabelecidos que distingue a exploração de limites da atitude correspondente do agente periférico.
Venhamos então a este. Também aqui
se assinalam duas atitudes opostas. Na
negativa, o agente periférico, marcado
pela insegurança ante seus próprios valores e "receitas", se define pela tendência à imitação, isto é, pela admissão de
que traz consigo um traço de inferioridade. Dois exemplos. Na "Minima Moralia" [ed. Ática], Adorno notava, entre os
estudantes negros de economia em Oxford e nos historiadores da arte e musicólogos de extração pequeno-burguesa,
a tendência de unir o novo com "um
imoderado respeito pelo estabelecido".
Tão importante quanto a observação é,
entretanto, o título que dava ao item: "Os
Selvagens Não São Homens Melhores".
E por que haveriam de sê-lo, nos perguntamos, salvo para aqueles que mantêm
estável a crença no homem natural de
Rousseau? Em um só exemplo, temos
comprovada a imitação dos periféricos e
a manutenção de receitas automatizadas
por um pensador do porte de Adorno. O
segundo exemplo abre outro horizonte.
Em suas memórias, "Out of Place" [Fora de Lugar, ed. Vintage, 2000], Edward
Said conta sua educação no Cairo. Como
seu pai era um palestino com passaporte
norte-americano e a família pertencia à
burguesia de dinheiro, o jovem Edward
podia frequentar as escolas britânica e
norte-americana. As brigas físicas em
que entrava com os colegas seriam normais em sua idade se os adversários não
fossem filhos de ingleses, de norte-americanos, de canadenses. Em certa parte,
narra uma dessas desavenças. O adversário, um menino belgo-americano, ganhava dele e Edward estava a ponto de
desistir. Nesse momento, porém, ouve
um dos espectadores, que lhe adverte
que o adversário já não se aguenta. Edward o escuta, reage e ganha.
O que importa é a reflexão feita mais
tarde por Said: "A sensação completa
que tive foi de minha identidade mal-ajustada como americano, dentro da
qual se ocultava a identidade árabe, de
que não tirava força, mas sim aturdimento e mal-estar". A figuração da dupla
identidade é preciosa. Seu reconhecimento por Edward o abria para a insegurança e daí para a adoção de uma conduta imitativa. Mas, conhecendo o leitor o
que caracterizaria o Said adulto -a
comprometer-se e participar ativamente, como professor de uma universidade
norte-americana, da luta palestina-,
nos é possível antecipar que a atitude negativa, imitativa, não é a única entre os
periféricos. Chamamos a seu oposto explosão de limites.
Revoluções incompletas
Como a
explosão e exploração de limites se distinguem? Adiantemos: se automatização
e imitação, como atitudes negativas, ainda podem ser equiparadas, a explosão e a
exploração de limites assinalam com força a assimetria das duas posições e, portanto, dos dois lugares. Enquanto a exploração de limites oferece a seu agente
um marco de segurança, a possibilidade
de manter o pé em terra firme, a explosão de limites supõe a constante descontinuidade, a necessidade de sempre partir do ponto zero. Prova-o Sérgio Buarque ao dizer, já em 1940, que "nossa literatura até aqui tem evoluído menos por
progressão contínua do que por meio de
revoluções periódicas".
E o que são revoluções contínuas senão
revoluções que não se completam, que
mutuamente se destroem, cuja herança é
o acúmulo de ruínas? Forçado pela insegurança que o rodeia, tentado ao mesmo
tempo que distanciando-se da imitação
praticada pela maioria, o agente que explode os limites paga com a própria pele
sua ousadia: seu reconhecimento ou é
postergado ou depende de que venha de
fora de um lugar central. Em qualquer
dos casos, tende a ser facilmente esquecido sob o nome de "precursor".
Habitantes de um continente periférico, nossa primeira obrigação é reconhecermos a assimetria que nos condiciona.
Depois desse reconhecimento, começa a
tarefa mais difícil: combatê-la.Ou ainda
pensamos que ela se resolverá por soluções econômicas?!
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da
Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor
de "O Redemunho do Horror" (ed. Planeta) e "Intervenções" (Edusp). Escreve regularmente na seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).
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