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São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

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A artista multimídia norte-americana debate com a performer iugoslava Marina Abramovic sobre a natureza da criação estética, a interação com a platéia e a paixão pelo imponderável

Aventuras pelo invisível

por Laurie Anderson

Divulgação
"Barroco Balcânico", performance em que Marina Abramovic passou quatro dias limpando ossos de gado, na Bienal de Veneza de 1997; na outra pág., "Lábios de Thomas" (1975-97)


Em meados de março passado, Marina Abramovic e eu nos sentamos em meu estúdio e conversamos -ou melhor, entoamos, já que foi mais parecido com fazer música do que com falar. Pulamos de assunto em assunto: o futuro dos objetos, cair aos pedaços, mestres, pegar o fio da meada, platéias, desapego. A voz de Marina é melodiosa. Ela ronrona, arrasta muitas sílabas, omite os artigos. Ri muito. Falar com ela é tão íntimo quanto ficar na sauna. Conheci Marina em 1977, quando ela e Ulay, seu então parceiro na vida e na arte, haviam se fincado em um vão na porta de entrada da Galleria Comunale d'Arte Moderna e Contemporanea de Bolonha durante seu festival de apresentações. Quem quisesse entrar na mostra tinha que se espremer entre os dois, encostando-se em seus corpos nus. Cada visitante devia escolher se preferia defrontar-se com ele ou ela. Eu adorei aquilo! Para mim, foi de longe a performance mais desafiadora da mostra. Fiquei esperando perto da entrada e, depois que a polícia pôs um fim à apresentação deles, tive a oportunidade de conhecê-los. Desde então, assisti a várias performances de Marina. No final dos anos 70, encontrei-me com Marina e Ulay aqui e ali na Europa no circuito artístico. Lembro-me de caminhar a passos rápidos em volta deles enquanto dirigiam seu carro em círculos infindáveis em frente a um museu em Paris, em uma performance de 16 horas intitulada "Relação em Movimento". Naquela época, nos tornamos amigas e, apesar de haver às vezes longos intervalos entre os nossos encontros, sempre conseguíamos nos conectar rapidamente. Sempre adorei o senso de aventura de Marina. Ela também possui a rara capacidade de estar no presente e de prestar uma perfeita atenção ao seu redor. Em 1980, passamos algum tempo juntas no Pacífico Sul, na ilha de Ponape. Fazíamos parte de um grupo de artistas -entre eles John Cage, Chris Burden, Brice Marden, Bryan Hunt e Joan Jonas- convidados a fazer uma gravação chamada "Palavra da Boca". No dia em que chegamos, algo chocante aconteceu: o primeiro assassinato da ilha. Por algum motivo, o delegado local nos convidou para o enterro. Marina e eu éramos as duas únicas pessoas do nosso grupo que foram à cerimônia, e foi então que eu percebi que também partilhávamos de um fascínio pela morte e por costumes estranhos -quanto mais estranhos, melhor. Recentemente, assisti ao espetáculo realmente transformador "A Casa com Vista para o Mar", na Sean Kelly Gallery, em Nova York. A espiritualidade que conduz grande parte da obra de Marina estava agora no cerne do trabalho. A confrontação com a platéia não tinha mais nenhum acessório. Por 12 dias, ela ficou morando, totalmente à vista, em uma plataforma na galeria. Tomou banho de chuveiro, bebeu água, sentou-se na privada, penteou os cabelos, mas na maior parte do tempo ficou sentada olhando para as pessoas que iam assistir ao espetáculo. Era impossível ser mais direto. Ela jejuou durante o período e disse depois que isso havia aumentado sua sensibilidade e sua ligação com a platéia. Quando fui vê-la, tive um encontro muito forte e sem palavras. Também fui capaz de sentir a passagem do tempo de uma forma única -a um ritmo em algum lugar entre a música e a meditação. "A Casa com Vista para o Mar" me fez lembrar que Marina pode de fato transformar e direcionar pensamentos. Ela entende e usa a estática. E cria a transformação a partir dos mais simples materiais, dando destaque ao próprio corpo. Uma pessoa intensamente física, ela combina esse aspecto com o espiritual de uma forma completamente única.

Venho tentando encontrar uma foto que tirei de você, flutuando no mar, em 1980. Era algo lindo.
Era o mar ou será que eu estava debaixo de uma cachoeira?

Era o mar, com praias que entram lentamente para baixo da água. Não há nenhum penhasco, portanto não sei como subi para te olhar de cima para baixo. Talvez, quando eu encontrar a foto, você possa me dizer.
Sim, se eu conseguir me lembrar. Então vamos começar com perguntas simples e então passaremos à arte. Quando você era criança, teve algumas experiências que não consegue explicar racionalmente?

Eu as criei. Tentei inventar situações irracionais, que nunca haviam acontecido antes.
Tais como?

Um homem está caminhando pela estrada. Um ganso canadense cai bem em cima da cabeça dele; no mesmo momento surge um triplo arco-íris e o sujeito tem um ataque cardíaco.
É uma imagem fantástica. Você já fez algo com ela?

Ocasionalmente eu a uso para sair de estados hipnóticos. E você?
Eu tenho sonhos muito estranhos dos quais acordo completamente apavorada. Eles se repetem em períodos diferentes da minha vida. Não consigo explicá-los. Têm algo a ver com a perturbação de uma ordem que não deveria ser perturbada. Eu venho de uma família militar; talvez seja por isto que tenha esse tipo de sonho. Tenho um em que estou na frente de um imenso exército de 5.000 soldados em uniformes perfeitamente passados a ferro. Eu os inspeciono e vou até cada soldado e tiro um botão de cada uniforme e o jogo fora. Eu destruo a simetria, e isso não é permitido. Então acordo em pânico.

É interessante você usar a simetria como um exemplo de ordem, porque a simetria é ao mesmo tempo perigosa e enfadonha. São imagens compostas. Talvez seja porque os dois lados de nosso cérebro precisem combinar coisas. Em seu sonho, você tirou um botão diferente de cada pessoa?
Não, sempre o mesmo.

Será então que você não estava simplesmente criando uma outra situação simétrica?
(risos) O fato é que me interesso pela idéia de que organizamos tudo, e depois, no último minuto, tudo muda, toma um rumo diferente. Gosto muito disso. Aprendi sobre isso com os tibetanos.

Lembra-se da mandala que os monges criaram no Museu de História Natural no final dos anos 80? Levaram seis semanas para fazê-la, colocando a areia colorida grão por grão. Foi então que vieram duas crianças e desarrumaram tudo.
E então?

Os monges riram.
É claro.

Porque trata-se de mudança. Não importava o quanto eles haviam trabalhado naquilo, eles iam destruí-lo no final de qualquer forma.
Isso é o que me fascina nos tibetanos. Já te contei a história da pirâmide? O Dalai Lama queria um concerto, com música sacra das cinco diferentes tradições budistas do mundo, todas em um palco, cantando uma música, o que nunca havia acontecido antes. Deveria acontecer no centro de música de Bangalore, no sul da Índia. Eles fazem esses cânticos profundos. É fantástico. Fui convidada para montar a coreografia. Então fui ao monastério com um megafone. Havia 106 monges.

Quando foi isso?
Foi exatamente há quatro anos. Então fiquei pensando que a forma poderia ser de uma pirâmide humana. Levou cinco semanas para construir degraus de madeira sobre rodas. Elas tinham que deslizar para dentro e para fora do palco e era preciso um minuto e dez segundos para colocar todos os 106 monges em pé na posição no palco. Tivemos que ensaiar muito; eles não estavam acostumados com esse tipo de presença no palco. Quando terminou -eu já estava no monastério havia mais de um mês-, o monge principal veio e disse: "É muito interessante, mas não podemos usar essa pirâmide". E eu disse: "Como assim?". E ele disse: "Porque na tradição budista não há hierarquia".

Eu estava imaginando quem ficaria no topo.
Sabe, eu não conseguia entender como eles puderam me deixar trabalhando todo esse tempo, todo santo dia, durante cinco semanas, sem dizer que não o fariam. Disseram-me que não quiseram me ofender. Eu estava chorando. E eles disseram esta simples frase: "Deixe estar". Então no concerto eles se sentaram no lugar que quiseram e cantaram e foi perfeito. Durante a apresentação, você precisa estar sob controle. Maria Callas disse, certa vez: "Quando você se apresenta, metade do cérebro precisa estar totalmente controlada e a outra metade do cérebro deve estar totalmente perdida". Essa é a essência do que eu quero dizer. Você precisa contrabalançar os dois. Como é com você quando faz apresentações?

Exatamente igual. Mas vamos falar um pouco do público. Como você vê o público? Quando estava trabalhando com atores, aprendi sobre o público por meio deles. Eles perguntavam a respeito das motivações de seus personagens e isso realmente me deixava louca. Eu pensava o tempo todo naquela ótima série de ensaios intitulada "Verdadeiro e Falso", que [o dramaturgo] David Mamet escreveu sobre como falar com atores. Ele disse que os diretores deviam simplesmente dizer aos atores para falarem alto e claramente e esquecerem suas motivações, esquecerem seus "passados". Eles não têm nenhum passado! De qualquer forma, havia um ator com o qual eu estava trabalhando que não parava de me perguntar: "Quem é você quando se apresenta? Quem é o seu público?". E eu continuava dizendo: "Não sei, não sei". Então percebi que nunca tinha colocado aquilo em palavras porque parecia muito idiota, que estava falando com uma versão mais triste de mim mesma, sentada no meio do teatro. Isto soa narcisista, mas não sei quem são as outras pessoas e não gosto quando elas supõem que sabem quem eu sou. É muito complicado quando você está dando alguma coisa a alguém, o quanto você está aberto a eles e o quanto eles estão abertos a você?
É uma pergunta importante, porque a relação com a platéia é a essência da apresentação. No meu caso, a necessidade de estar completamente aberta e vulnerável, de dar tudo o que eu puder, é extremamente forte. Cada pessoa na platéia é importante. Não tenho esse tipo de sentimento na vida real, mas na performance sinto esse amor enorme. Na última performance, quando fiquei durante 12 dias, totalmente exposta, na Sean Kelly Gallery, não aconteceu quase nada. Mas é o simples fato de estar lá; não há nada além de estar ali para eles. Eu estava lá para ser projetada. A coisa toda precisa ser quase uma troca invisível. Você perguntou como era a conexão naquela performance. Eu realmente olhava para as pessoas na galeria. Para mim, os olhos são uma porta para algo mais, e, o que quer que esteja acontecendo em suas vidas, eu percebo. Você não pode imaginar o quanto chorei naquela performance. Essa tristeza vem porque eles projetam a sua própria tristeza em mim e eu a reflito de volta. E eu choro da forma mais triste, para que eles fiquem livres. As pessoas vinham como bêbados, em vez de uma dose de vodca eles vinham procurar uma dose dessa conexão com os olhos. Eles vinham de manhã; às 8h45 estavam lá esperando, com roupa de trabalho. A galeria abria às 9h, e eles entravam, olhavam para mim durante 20 minutos e iam embora. Muitos me disseram depois que nem sequer estavam ligados à arte. Eu estava pensando que as pessoas geralmente não olham para eles dessa forma íntima, então talvez só precisassem ser vistos daquela forma antes de ir trabalhar.

Isso me lembra o quanto a linguagem é uma defesa. E o quanto ela é causa, distanciamento; é chamada de comunicação, mas frequentemente não é. Às vezes trata-se simplesmente dessas coisas inteligentes que criamos, e frequentemente elas se intrometem de fato naquilo que queremos dizer.
Mas é diferente quando se tem um diálogo. Na performance, é um monólogo, e nesse monólogo você cria tantos espaços sobre os quais se pode projetar, tantas imagens, uma após a outra. O que também é especial é que o som da voz vai criar certas vibrações. Às vezes não é nem sequer a palavra, mas o espaço por entre as palavras, uma longa pausa que funciona como mágica. Um monólogo torna-se algo além da linguagem; torna-se tão forte. No momento em que se torna uma conversa, eu acho, tentamos ser espertos, tentamos construir coisas, e então tudo volta a se desintegrar. Mas no monólogo as emoções vêm de forma diferente. Há duas pessoas cujas vozes posso escutar durante um bom tempo, a sua e a de [Vito] Acconci.

Ah, Vito!
Tem a ver com a vibração. Você precisa estar em um determinado estado para ter uma tal vibração. Você não pode simplesmente aprendê-la. Na performance, você entra em um estado mental que gera essa voz. Com Vito era em seus filmes caseiros, quando estava sozinho, apenas com a filmadora. Acho que ele fica tímido em público.

Certa vez, escrevi um roteiro de filme, só por diversão, quando fiquei presa em um aeroporto. Vito era o astro. Nos primeiros 15 minutos, você o vê de costas.
O roteiro foi escrito para o Vito?

Sim, era um daqueles filmes de arte. Eu estava escrevendo coisas para ele falar. Ele é tão misterioso. Ele é muito aberto, mas eu sinto como se ele estivesse sempre se afastando.
Isso é muito engraçado, porque eu também tenho o Vito em um dos meus roteiros. Fale-me do seu, e eu te falarei do meu.

O meu era uma história de mistério, "Neuewelt 2000", sobre um festival alemão de performances que estava acontecendo em um trem que atravessava a antiga Alemanha Oriental. O promotor deste festival era um fanático por trens elétricos de brinquedo chamado Rolf. Os atores seriam Vito e Arto Lindsay. Eu inventei outros personagens, artistas performáticos que também estavam no trem. Um irmão e uma irmã muito pálidos da Noruega que cantam, juntos, canções nórdicas. Michel Waisvisz também tinha um papel.
Mas o que fazia o Vito? Parece muito misterioso vê-lo apenas de costas.

Bom, Rolf Vito não conseguiu uma passagem para voar diretamente de Nova York por causa do governo da Alemanha Oriental. Por isso ele teve que fazer um desvio por Cuba e Polônia e depois pegar um trem para a Alemanha Oriental. Acaba quase como o fetiche de Rolf por trens elétricos, com Vito em um trem que estava literalmente indo para lugar nenhum, como em um circuito em volta de uma árvore de Natal, um trem de brinquedo que não pára. Vito passa pelas cidades renomeadas da antiga Alemanha Oriental e elas não podem mais ser encontradas no mapa devido a seus nomes. Ele não tem idéia de onde está. Fica cada vez mais perdido.
Minha história é um conto de Beckett que não foi escrito para ser uma peça, chamada "Mal Vi/Mal Di" (Mal Visto/Mal Dito). A história é sobre uma mulher idosa -eu a interpretaria sentada em uma cadeira em um espaço completamente vazio. Há uma pequena janela e um raio de luz entrando bem na frente dos pés dela, mas sem tocá-los. Nas histórias de Beckett, um monólogo acontece na cabeça do personagem e, consequentemente, na sua cabeça, constantemente. Ela pensa a respeito de coisas; são palavras e palavras e palavras. Ela quer se levantar, pegar a cadeira e colocá-la em frente à luz e sentar-se novamente, para que a luz do sol a atinja. Isso leva aproximadamente 45 minutos porque ela é muito velha e muito doente e não consegue andar. E durante todo esse tempo ela está falando sobre o que está em sua cabeça, sobre sua vida, passado e futuro, e velhos conflitos. Ela pega a cadeira muito lentamente, muito lentamente, muito lentamente, e ela está levantando a cadeira, quase a colocando ao sol, quando ela muda de idéia e leva outros 45 minutos para voltar. Eu queria interpretar essa mulher, mas queria que a voz na minha cabeça fosse a do Vito. Gosto muito dessa idéia.

Porque você não faz isso? É uma grande idéia.
Nunca fiz isso.

Então faça! Quando você fala consigo mesma, você ouve uma voz ou simplesmente pensa pensamentos?
Acho que é uma voz.

Como é essa voz? É como "você realmente deveria fazer isso" ou "estou ficando sem tempo, deveria pegar um táxi". Tem uma textura ou um som? Estou usando exemplos acusatórios porque minha voz, quando eu a ouço, está sempre me censurando.
Eu não ouço muito a minha voz. Eu a ouvi claramente depois de não falar por 12 dias, quando voltei de "A Casa com Vista para o Mar" e dei uma palestra para o público. Era a primeira vez que eu realmente ouvia minha voz claramente, e foi tão estranho para mim porque eu tinha esse distanciamento dela e podia realmente ouvi-la. Diga-me, é importante para você ir a algum lugar geográfico -chamo-os de lugares de poder, onde você sente que há uma certa energia que você pode usar? Vulcões, cachoeiras, o mar...

Eles não precisam ser dramáticos, mas um lugar para o qual eu realmente gostei de ir há algumas semanas foi Green Gulch, na Califórnia. É um monastério com um grupo de artistas, pessoas de museus e lugares assim, que têm interesse no budismo. Eu estava dando uma dissertação chamada "Tempo e Beleza". Um título modesto. Escrevi quando estava em Atenas. Fica voltando para a crença e a beleza e a estética.
Eu acho que a beleza machuca.

Para mim, às vezes machuca, às vezes não. Uma das minhas citações desconcertantes preferidas vem de Lênin: "A ética é a estética do futuro". Acho que significa que em algum momento do futuro seremos todos bons uns para os outros e nos comunicaremos de forma tão clara que não precisaremos daquelas coisas que colocamos na categoria da beleza. Serão apenas fetiches, relíquias. Na minha dissertação, falei sobre como a crença e a beleza esfregam-se uma contra a outra para fazer algo, e como ficam pouco à vontade quando ficam paradas juntas. Usei o Parthenon como exemplo. Quando o Parthenon era um lugar de devoção, todos levavam suas belas estátuas para dedicar aos deuses, seus "kouri", para celebrar suas vitórias, suas dedicações e suas preces. Eles as colocavam em pé ao redor do Parthenon, que rapidamente acabou ficando parecido com um museu, havia tanta coisa ali. Então todos voltaram para as cavernas, as florestas e os rios onde pudessem encontrar os deuses, porque não conseguiam mais encontrá-los no Parthenon.
Sabe, havia um café muito interessante nos anos 70, para o qual um amigo meu, Lutz Becker, me convidou. Um homem de idade estava lá sentado, e eu não me dei conta, até a metade da refeição, de que se tratava de Albert Speer, o arquiteto de Hitler. Ele acabara de sair da prisão e estava ajudando com as maquetes para um filme sobre Hitler que Lutz estava fazendo, chamado "Águia de Duas Cabeças".

Muita simetria nisso, por sinal.
E eu fiz uma pergunta a Speer: "Porque você utilizou concreto em todos aqueles prédios?". Nunca me esquecerei da resposta dele. Ele disse: "Quando são destruídos, permanecem bonitos". O colapso do concreto fica mais bonito do que o de tijolos: há mais "momentum"; eles caem em pedaços grandes. Um arquiteto que constrói suas coisas para sempre, pensando na destruição como parte do processo! A outra coisa engraçada a respeito da devoção estava na Tailândia, em um daqueles fantásticos templos antigos de onde você pode sair e comprar uma pequena peça de folha de ouro para colocar em uma escultura. Estava olhando esse lugar imenso, e em um canto empoeirado havia uma grande caixa de fusíveis com todos os fios elétricos, que alguém havia coberto com folha de ouro. Adorei a idéia de prestar devoção à eletricidade como se fosse um mistério. E por que não?

Fico imaginando o que acontece com o ouro e o cobre, sabe, como um condutor.
A caixa de fusíveis não funcionava, estava quebrada. Laurie, o que é o vazio para você? É uma palavra tão forte.

Para mim, é um termo estático. O vazio é tão estático quanto eu posso imaginar. O vazio para mim é expansivo. E eu não preciso estar lá. Eu não posso existir nele. Gosto de imaginar lugares onde não existo.
Eu não. (risos) Mas ao mesmo tempo, como no budismo...

Você pratica alguma coisa?
Sou incapaz de fazer coisa alguma regularmente. Sempre faço coisas como parte de um projeto. Se tenho em mente que preciso fazer algo, então gero uma enorme disciplina e força de vontade e entro no espaço em que tenho que entrar para fazer a performance. Mas é impossível, para mim, fazer algo como acordar todos os dias às 6h pra correr, como as pessoas fazem. Gosto de criar regras e mudá-las o tempo todo. Mesmo quando compro leite em Amsterdã, encontro novas maneiras de dar a volta no canal. A idéia de hábitos, de disciplina... Há algo dentro de mim que não consegue funcionar dessa maneira.

É maravilhoso, fazer de forma diferente a cada vez.
Eu gosto da imprevisibilidade. Digo aos meus alunos: "Embarque em um trem e não olhe para ver aonde ele está indo, apenas se sente e se encontre em uma nova situação e, então, a partir dessa situação, veja o que vai acontecer". Coloque-se em situações imprevisíveis. Se não for uma possibilidade na vida, então tento fazê-lo na performance. Estabeleço regras e não tenho idéia do quanto será difícil ou como irei conseguir, mas então acontece. Quando você realiza uma performance, você sabe exatamente como vai acontecer? Ou está sempre em aberto?

Ah, está sempre em aberto. A última performance que fiz, "Felicidade", era sobre a expectativa. Eu havia ficado entediada com meu próprio estilo, meu modo de fazer as coisas. Estava simplesmente vivenciando aquilo que eu esperava. Então me coloquei em situações nas quais não sabia o que fazer, o que dizer ou como agir, simplesmente para ver o que aconteceria. Mas não importa o quanto você tente escapar de seu estilo, ainda continua muito parecido com o que você fez antes. Não tem problema, eu acho, se há encadeamentos passando por tudo.
É tão difícil mudar. Uma mudança radical só pode acontecer com algum tipo de tragédia que abala totalmente a sua vida. As únicas mudanças que eu posso esperar são provenientes de minha própria performance. Eu não aprendo de outra forma na vida.

Quem são os seus mestres?
Ninguém, realmente. Não vejo isso dessa forma. Havia apenas uma pessoa na minha vida que eu pensei que poderia ser meu mestre, mas ele morreu. Justamente quando o encontrei, ele morreu.

Quem era?
Foi em 1982 em Bodhgaya, um lugar de peregrinação [para os budistas, localizado na Índia], que tem a árvore Bohdi. Cheguei em uma noite de lua cheia. Foi um momento muito auspicioso. E eles me disseram: "Em nossa cidade está um lama muito importante, que é o mestre do Dalai Lama". Na época, eu não sabia nada sobre budismo, nada. Fui porque todo o mundo estava indo ver esse mestre especial. Ele estava sentado em um monastério. Ele parecia a lua cheia, um grande bebê, com uma careca maravilhosamente brilhante, com idade entre 80 e 100 anos. Não dava para dizer. E eu fui cumprimentá-lo, e ele pegou seu dedo mindinho e simplesmente tocou rapidamente o dedo na minha testa. E foi só. Olhei nos olhos dele e então voltei e me sentei. Cinco minutos depois eu estava com uma febre de 40 graus. Estava vermelha como um morango. Comecei a chorar e a chorar e tive que deixar o monastério. Chorei por cerca de quatro horas, enormemente. E eu pensava: "Por que estou chorando? Nada me aconteceu; não estou triste". Fui apenas tocada pela inocência dele na forma de um velho e de uma criança ao mesmo tempo. Alguma coisa se abriu para mim. Se ele tivesse me falado para pular da janela, eu o teria feito. Eu nunca havia sentido aquilo antes, que deve ser parecido com o que a pessoa sente por um grande mestre, o ideal da confiança plena. E então um mês depois ele morreu. Mas então eu o encontrei novamente. Três anos depois, eu estava indo novamente à Índia, para um retiro em um outro monastério. E, na floresta, perdi o caminho e me deparei com uma casa, com um velho lama sentado do lado de fora lavando louça. Estava escuro, e ele disse: "Entre, entre, tome um chá". Entrei no quarto e lá estava ele, dessa vez embalsamado. Ele estava sentado no quarto, embalsamado no sal. Agora ele está na sala de estar do Dalai Lama em Dharmsala. O nome dele é Ling Rinpoche. O Dalai Lama queria tê-lo só para ele.

No sal? Você conseguiu vê-lo?
Eles o colocam em um preparado especial e ele parece completamente vivo. Ele está vestido e sentado; os monges morrem na posição sentada. Foi incrível. Isso é exatamente o que temos que fazer, é tão importante, perder o caminho, é assim que se encontra outras coisas. Quando eu era uma atriz bem jovem, estava tendo idéias para trabalhos diferentes. E pensava: "Deus, como eu deveria fazer isso, não tem nada a ver com o que fiz antes. Não vejo nenhuma linha, não há continuidade". Estava obcecada pela idéia de continuidade, de que um trabalho deveria levar a outro e outro, de que você precisa formar um corpo de trabalho. Mas após 20 anos você vê que é a continuidade e é tão lógica. Você não poderia ter feito outra coisa, há um fio condutor naquilo, tudo está conectado. Nós somos as conexões.

Você consegue se imaginar embalsamada e sentada na casa de alguém?
Eu gosto tanto disso. Eu sou toda para essa eternidade. Detestaria ser cremada. Não gostaria de ser comida por vermes. Talvez uma árvore possa crescer a partir de mim. E só. Mas a idéia de embalsamar é muito boa. Gosto dessa coisa de "para sempre". E você?

Eu gostaria de ser cremada. (risos)
Então essa é uma grande diferença!

Eu não gosto tanto da idéia de chamas quanto daquela de partículas. Eu gostaria de me tornar muitas, muitas partículas.
Quero viver por muito tempo. Essa é a minha obsessão. Quero viver para passar dos cem anos. Minha avó morreu aos 103 anos e a mãe da minha avó estava com 116 quando morreu. Tenho essa idéia de que, depois dos cem anos, algo diferente acontece. Quando somos jovens, e mesmo agora, apesar de eu não ser tão jovem, há essa idéia de emoções e sempre algum tipo de sofrimento envolvido. Eu gostaria tanto de alcançar o ponto de desapego, de não-sofrimento, quando você realmente sabe que as coisas estão acontecendo porque elas já aconteceram para você centenas de vezes antes. Você pode rir de tudo isso. Ter essa sabedoria e distanciamento e paz!

Como você acha que pode chegar lá?
Ah, montes de iogurte!

(risos) Quero dizer, ao desapego?
Você não leva as coisas para o lado pessoal. Mesmo se você ama alguém, você deixa essa pessoa viver. E se essa pessoa te deixa, e você ainda a ama... porque o apego cria tanto sofrimento! Isso é básico.

Budismo 101.
Teoricamente, podemos lidar com isso, mas quando se trata da sua própria vida, é tão doloroso. O apego no meu caso é sempre em relação a pessoas. Realmente não me importo com coisas. Posso deixá-las, trocá-las.

Você tinha em Ulay um parceiro-amante e colaborador na arte. Você o viu depois que vocês romperam, há dez anos?
Sim, durante sete anos não nos falamos de jeito nenhum, nenhuma palavra, então decidi que convidaria a mulher e os filhos dele, dando um almoço e presentes a todos. Fizemos isso, está tudo bem agora.

Onde ele mora?
Ele mora em Amsterdã. Ele me convida às vezes, faz um filé grelhado para mim, mas ainda há muito sofrimento de minha parte. Não terminou muito bem, na verdade. Quando Ulay partiu, levou todos os trabalhos artísticos que fizemos juntos. Tive que recomprar dele negativos antigos, imagens, tudo. Você teve que recomprar coisas dele?
Sim. Aliás, ainda estou pagando. (risos)

Por que ele decidiu que as coisas que vocês haviam feito juntos pertenciam a ele?
Foi muito difícil. Eu descobri tantas coisas. Como por exemplo, que ele estava me traindo em uma época em que eu achei que éramos felizes. Não sei, fiquei decepcionada. E agora não tenho falado com o meu irmão durante os últimos dois anos. Depois do bombardeio de Belgrado [na Iugoslávia], ele veio e ficou comigo em Amsterdã por dois anos. Então muita coisa aconteceu, é complicado, mas, para ele, não falar comigo é não ter que admitir que ele não conseguiu ficar no mundo ocidental. Ele tem uma mentalidade totalmente diferente. É tão difícil para ele funcionar neste mundo.

Por que será?
Nos Bálcãs, a relação da mãe com o filho é muito diferente da relação com a filha. As crianças do sexo feminino precisam trabalhar. O menino fica em casa e a mãe faz tudo para ele -passa as camisas dele, cozinha para ele, por toda sua vida. Quando meu irmão veio para Amsterdã, nem passou pela cabeça dele que ele pudesse fazer algo. Durante dois anos ele assistiu à CNN, queixou-se da Iugoslávia, enquanto escrevia seu texto filosófico e reclamava de que eu trabalhava demais. A filhinha dele foi à escola em Amsterdã, e eu tomei conta de ambos durante dois anos. Foi o meu limite.

E onde está a mulher dele?
Ela estava em Belgrado. É diretora do museu Nikola Tesla [1856-1943, cientista e engenheiro elétrico sérvio-americano] de lá, Marija Sesic. Ela me mostrou o livro de convidados, com a sua assinatura.

Eu fiquei muito orgulhosa de estar lá.
Eles estão tentando reconstruir o museu. Eu disse a eles: "Não façam isso, está tão bom assim".

Compõe belas ruínas.
Eles realmente não deveriam fazer nada. É velho e está caindo aos pedaços. Mas tem um clima especial. Ah, por falar nisso, ela perguntou se você ou eu temos alguma idéia, antes que eles reconstruam, se queremos fazer algo lá.

Legal!
Qualquer trabalho experimental... Ela pode tornar viável.

Que tal você sentada em uma cadeira lendo um livro, esperando pelo raio de eletricidade se projetar da Espiral Tesla. Com a voz de Vito Acconci. Poderíamos associar a coisa toda.
Mas daí você precisa fazer algo. O que você faz?

Hum... Eu posso fazer os sapatos que vão impedir que você seja eletrocutada. (risos) Você teria que confiar em mim.
Poderíamos colocar o Vito em algum outro lugar. Que tal usarmos a sua voz, e eu fico sentada lá.

Seria ótimo! Seria engraçado fazermos algo juntas!
O museu Nikola Tesla seria fantástico.

Tesla morreu em Nova York, acho que na rua 43; no entanto não há nenhum marcador.
Há uma Tesla Society em Nova York. Marija me mostrou todas as roupas de Tesla, um guarda-roupas completo. Ele era tão requintado usava todos estes ternos antigos, sapatos de couro de crocodilo e coisas do gênero.

Talvez pudéssemos simplesmente pegar emprestado alguns dos ternos dele.
E andar por aí fingindo ser Tesla! (risos) Isso poderia realmente ser interessante. Sabe, eu devo fazer um grande exposição em 2005, em Belgrado.

Então é a oportunidade perfeita.
Por que você gosta de Tesla? Porque eu o amo.

Ele queria fazer uma ligação elétrica no chão. Eletricidade de graça para todos. Ele realmente acreditava que aquilo funcionaria.
Ele tinha imagens mentais das invenções dele. Tinha tanta certeza de que funcionariam que não precisava testá-las.

Eu adoro a autoconfiança.
E eles diziam que ele era um alienado. E ele estava apaixonado por uma pomba. Era o caso de amor dele. Quando a pomba morreu, um estranho tipo de luz saiu dos olhos dela, na frente dele. Que tipo de imagem poderíamos usar para a nossa peça?

Que tal uma foto de você flutuando, se eu conseguir encontrá-la? E talvez uma foto de Tesla? E uma do Vito?
Onde está aquela imagem de você de pé em cima de um cubo de gelo? É uma das minhas favoritas -é como o início de tudo. Você tem a imagem do gelo, que é água. E eu tenho a imagem da flutuação, que é água. Então temos a imagem de Tesla, que é eletricidade. Estamos bem.

Perfeito. Fogo e água.
E Tesla lendo o livro dele.


Vito Acconci Nascido em Nova York, em 1940, abandonou a poesia pela performance nos anos 60, explorando temas como fantasia e voyeurismo, além de frequente mente parodiar o machismo intrínseco à arte. Na famosa performance "Seedbed" [algo como "solo adubado"], de 1972, o artista construiu uma rampa de madeira no fundo de uma galeria em NY e colocou uma caixa de som em um canto. Logrado pelo aparente vazio, o visitante que subisse a rampa recebia como resposta gemidos do artista, que se masturbava em baixo da estrutura de madeira quando ouvia passos

Arto Lindsay Compositor, guitarrista e produtor musical, nasceu nos EUA e foi criado no Brasil no auge da tropicália. A notoriedade underground do músico começou em 1978, com o disco "No New York", produzido por Brian Eno, que trazia músicas de sua banda de rock experimental DNA. Ao longo dos anos 80, tocou no Lounge Lizards e no Golden Palominos, produziu faixas para Laurie Anderson e David Byrne, e criou a banda Ambitious Lovers, que gravou três álbuns, utilizando elementos de música brasileira, que continuou a explorar em carreira solo nos anos 90

Michel Waisvisz
Conhecido por suas performances de música eletrônica utilizando um instrumento chamado "The Hands", sensor gestual que ele mesmo criou, trabalha desde os anos 60 pesquisando novas formas táteis com instrumentos eletrônicos. Ele dirige a fundação Steim em Amsterdã, onde performers de música, teatro, dança e novas mídias, além de DJs e VJs, desenvolvem seus instrumentos eletrônicos pessoais. Waisvisz tem trabalhos em colaboração com Laurie Anderson, Steve Lacy, DJ Spooky, Willem Breuker e Orquestra Sinfônica de San Francisco, entre outros

Ulay Antes da parceria de 12 anos com Marina Abramovic, o artista alemão Uwe Laysiepen, nascido em Solingen em 1943, realizou trabalhos fotográficos sobre movimentos de contracultura em 1968 e obras em colaboração com o artista Jürgen Klauke. Conheceu Abramovic em um encontro de artistas conceituais em Amsterdã, e o mútuo interesse por filosofias orientais (budismo, tantrismo, sufismo) os levou a fazer obras que levassem à alteração de estados mentais: performances que eram concebidas como cerimônias. Quando terminou o relacionamento entre os dois, realizaram uma última obra juntos: "The Lovers -The Great Wall Walk", em 1988, que consistiu em partir, cada um, dos extremos opostos da Muralha da China, caminhar até se encontrarem e, depois, separarem-se para sempre.


Esta entrevista foi publicada originalmente na revista "Bomb".
Tradução de Leslie Benzakein.


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