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A ENSAÍSTA AMERICANA DISCUTE DE QUE MANEIRA AS NOVAS "MÁQUINAS DE TRADUÇÃO" E A CONSOLIDAÇÃO DO INGLÊS COMO LÍNGUA INTERNACIONAL PODEM MODIFICAR O OFÍCIO
O EVANGELHO HEGEMÔNICO DA TRADUÇÃO
por Susan Sontag
Traduzir significa muitas coisas,
entre elas fazer circular, transportar, disseminar, explicar, tornar
(mais) acessível. Por "tradução literária" designamos, poderíamos designar, a tradução de um pequeno percentual dos livros publicados que de fato vale a pena ler, isto é, reler.
Proponho, portanto, que, para discutir
de maneira adequada a arte da tradução
literária, é preciso considerá-la essencialmente uma afirmação do valor da própria literatura. Além da óbvia necessidade de contar com a eficiente mão-de-obra do tradutor para criar um estoque
nesse pequeno negócio de importação-exportação em que a literatura se converte, além do indispensável papel da
tradução quando se trata de fazer da literatura um esporte competitivo, jogado
tanto nacional quanto internacionalmente (com rivalidades, times e prêmios
lucrativos), além dos incentivos mercantis, do impulso agonístico e lúdico para
traduzir, existe uma inspiração mais antiga, claramente evangélica e mais difícil
de confessar nesses tempos sem fé, tempos de consciente desapego a princípios
menos imediatistas.
Consenso
Segundo essa inspiração
que chamei de evangélica, o propósito da
tradução é ampliar o público leitor de
um livro julgado importante. Nessa perspectiva, há livros nitidamente melhores
que outros. Nela, o mérito literário assume forma piramidal, tornando-se imperativo franquear ao maior número possível as obras no topo da pirâmide, ou seja,
traduzi-las em muitas línguas e retraduzi-las sempre que oportuno. Evidentemente, tal visão da literatura acredita na
possibilidade de um consenso ao tentar
decidir quais as obras fundamentais. Isso
não implica pensar nesse consenso -ou
cânon- como algo a ser definitivamente estabelecido, não suscetível de alterações futuras.
No vértice da pirâmide, situam-se textos sagrados, como as Escrituras e livros
de ensinamentos exotéricos imprescindíveis que, por definição, tinham de ser
traduzidos (as traduções linguisticamente mais influentes devem ter sido as da
Bíblia: a tradução de são Jerônimo, a de
Lutero, a de William Tyndale, a versão
King James). Traduzir é antes de mais
nada divulgar melhor o que merece ser
divulgado, por levar a um aprofundamento, a um apuro, a uma exaltação, por
se tratar de um precioso legado da história, por contribuir para o conhecimento,
sagrado ou não. No âmbito secular, via-se na tradução uma atividade benéfica ao
próprio tradutor: traduzir constituía um
exercício cognitivo -e ético- valioso.
Numa era em que se aposta na capacidade dos computadores -"máquinas
de traduzir"- de em breve realizar a
maior parte dos trabalhos de tradução, a
chamada tradução literária perpetua a
concepção tradicional do que significa
traduzir. No novo modo de ver, traduzir
é encontrar equivalentes; noutras palavras, a tradução se torna um problema
para o qual se podem discernir soluções.
Por outro lado, na antiga visão, traduzir é fazer escolhas, escolhas conscientes
e não limitadas às rígidas dicotomias de
"bom" e "mau", "correto" e "incorreto",
pois se realizam num universo de opções
mais complexo, com distinções como
"bom" versus "melhor", "melhor" versus "o melhor de todos", sem falar de
oposições tão impuras quanto "antiquado" versus "atual, de última tendência",
"vulgar" versus "rebuscado, pedante" e
"conciso" versus "prolixo".
Princípios éticos
A tradução, entendida aqui como uma série de escolhas
em sentido amplo, era a profissão de indivíduos detentores de uma cultura restrita a poucos. Traduzir de forma cuidadosa, meticulosa, com inventividade e
respeito, dá a medida da lealdade do tradutor ao esforço da própria literatura.
Escolhas muitas vezes consideradas
meramente linguísticas sempre supõem
princípios éticos, o que tornou o ofício
de traduzir veículo de valores como integridade, responsabilidade, fidelidade,
ousadia e humildade. A visão ética da
tradução nasceu da consciência de se tratar de uma tarefa impossível, se julgarmos o tradutor capaz de tomar um texto
escrito numa língua e entregá-lo noutra
língua, intacto, sem perdas. Isso, obviamente, não é salientado pelos que aguardam ansiosos a obsolescência dos dilemas do tradutor, em virtude da maior
proficuidade de máquinas de traduzir,
melhores e mais engenhosas. A tradução
literária é um ramo da literatura; nada
mais distante, por conseguinte, de um
trabalho mecânico.
Literalidade
Mas o que faz da tradução um esforço tão complexo são as várias condições em jogo. Há exigências
derivadas da natureza da literatura enquanto forma de comunicação. No caso
de uma obra reputada essencial, há o dever de torná-la conhecida do maior público possível. Há a dificuldade de passar
de uma língua a outra e o embaraço decorrente da intransigência de certos textos. Pois existe algo inerente à obra e de
todo alheio às intenções do autor ou ao
que este consegue enxergar ali, algo que
emerge quando começa o ciclo das traduções -uma qualidade chamada, na
falta de outro termo, traduzibilidade.
Essa complicada rede de questões costuma ser reduzida ao eterno debate entre
os tradutores -a polêmica em torno da
literalidade-, que remonta pelo menos
à Roma Antiga, quando a literatura grega era traduzida em latim, e continua a
afligir tradutores de todas as nacionalidades (há, aliás, diferentes tradições e
preconceitos nacionais acerca do tema).
A mais longeva controvérsia no campo
das traduções é sobre o papel da exatidão
e da fidelidade. Sem dúvida existiram
tradutores no mundo antigo adeptos de
uma fidelidade literal estrita (dane-se a
eufonia!), posição defendida de forma
admiravelmente obstinada por Vladimir
Nabokov no comentário à sua tradução
do "Eugênio Oniéguin", de Puchkin. De
outro modo, como explicar o audacioso
e insistente argumento de são Jerônimo
(331-420), primeiro intelectual da Antiguidade (até onde sei) a refletir extensamente sobre tradução, de que o resultado inevitável de ter em mira uma reprodução fiel das palavras e imagens do autor é sacrificar o sentido e a elegância?
Exercício para a mente
Isso está
no prefácio que Jerônimo escreveu à sua
tradução latina da "Crônica" de Eusébio
(260-340), teólogo, historiador e bispo de
Cesaréia (traduziu essa história da igreja
cristã em 381-2, quando residia em
Constantinopla a fim de participar do
concílio. Seis anos antes, vivera em Belém, no intuito de aprimorar o seu conhecimento de hebraico. E quase uma
década antes iniciara o empreendimento
histórico de traduzir a Bíblia hebraica
para o latim).
A respeito dessa primeira tradução do
grego anotou: "Há muito tempo é uma
prática corriqueira entre os eruditos
exercitar as suas mentes vertendo para o
latim as palavras de escritores gregos e,
tarefa ainda mais difícil, traduzindo
poemas de autores ilustres, embora as
exigências adicionais do verso atrapalhem. Assim, nosso Cícero traduziu livros inteiros de Platão (...) e mais tarde se
divertiu com Xenofonte. Nessa última
tradução, o rio dourado da eloquência
encontra a todo momento novos obstáculos, contra os quais as suas águas quebram, produzindo tamanha espuma que
os que desconhecessem aquele original
não acreditariam estar lendo palavras de
Cícero. Nada surpreendente! É duro
acompanhar o percurso de outro escritor. É tarefa árdua manter incólumes ao
traduzir a felicidade de expressão e a elegância. Um escritor escolheu um palavra
capaz de expressar com força um determinado pensamento, e não disponho de
nenhum termo que transmita tal significado. Enquanto procuro satisfazer o aspecto semântico, posso caminhar longamente, mas avançar bem pouco nessa
jornada. É preciso levar em conta os
acréscimos e as subtrações da transposição, a variedade de casos, a diversidade
de figuras e, por fim, as características
peculiares do idioma nativo. Uma tradução literal soa absurda; mas, se eu tiver de
mudar ou a ordem dos termos ou as próprias palavras, julgarão que descurei da
obrigação de um tradutor" (da versão
para o inglês de W.H. Fremantle, 1982).
Assim como o balé clássico, a tradução literária é uma arte de repertório; obras de grande relevo são periodicamente refeitas
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"Ênfase do conjunto"
Impressiona,
nessa passagem de autojustificação, a
tentativa de levar os leitores a compreender como é desalentador o trabalho de
tradução literária. Mais adiante no mesmo prefácio, Jerônimo manifesta uma
insatisfação comum a todos que já se
aventuraram a traduzir.
Falando da Bíblia hebraica, ou seja, do
Velho Testamento, ele antecipa a sua futura faina, pois seria mais trabalhoso
(aqui temos de nos fiar em seu testemunho) traduzir o hebraico bíblico para o
latim do que traduzi-lo para o grego: "O
que pode ser mais grave que as palavras
de Salomão? Mais perfeito que o livro de
Jó? (...) Quando lidos em grego, fazem
sentido; já em latim, exibem uma total
incoerência. Se alguém imaginar, porém,
que a elegância da linguagem não sofre
com a tradução, deixemos que traduza
palavra a palavra um texto de Homero
para o latim. E digo mais: se traduzisse
esse autor na prosa da sua própria língua, a ordem das palavras pareceria ridícula, e, os poetas mais eloquentes, quase
estúpidos (...)".
Qual a melhor maneira de lidar com
essa radical impossibilidade de tradução? Para Jerônimo, não há dúvida de como proceder, segundo ele mesmo explica repetidas vezes nos prefácios às suas
muitas traduções. Na carta a Pamáquio,
escrita em 395, declara só haver um modo acertado de traduzir: "Preservando o
sentido e alterando a forma mediante a
adaptação das metáforas e das palavras à
sua própria língua. Não achei necessário
verter palavra por palavra, mas reproduzi o estilo e as ênfases do conjunto (...)".
Mais adiante, na mesma carta -e só
podemos inferir que são Jerônimo estava
respondendo a críticos e opositores crônicos-, proclama desafiadoramente:
"A tradução literal de uma língua para
outra obscurece o sentido". Se isso faz do
tradutor um co-autor do livro, ótimo.
"Realizo em parte o ofício de um tradutor e em parte o de um escritor", escreve
são Jerônimo no prefácio à "Crônica" de
Eusébio. A questão dificilmente seria
formulada de maneira mais direta e relevante para as reflexões contemporâneas.
Até que ponto o tradutor está autorizado
a adaptar, isto é, recriar o texto na língua
para a qual este será traduzido? Se a fidelidade palavra a palavra e a excelência literária são incompatíveis, quão "livre"
pode ser uma tradução responsável? Será
mesmo a primeira tarefa do tradutor
apagar a estrangeirice de um texto e remodelá-lo segundo as normas da nova
língua?
Todo tradutor sério se amofina com
tais questões: como o balé clássico, a tradução literária tem padrões nada realistas, ou seja, padrões tão severos que estão fadados a causar frustração, a gerar
nos profissionais mais ambiciosos uma
sensação de fracasso por julgarem as
suas traduções raramente à altura dos
originais. Bailarinos são treinados para
exaurir-se em vista do objetivo, não de
todo quimérico, da perfeição de uma expressividade exemplar e sem falhas. Na
tradução literária só pode haver um desempenho excelente, notável, nunca perfeito. Por natureza, traduzir sempre envolve perder algo da substância original.
Provisório
Mais cedo ou mais tarde
todas as traduções se revelam imperfeitas e, em última análise, até no caso das
mais admiráveis e modelares, passam a
provisórias. Assim como o balé clássico,
a tradução literária é uma arte de repertório. Obras estimadas de grande relevo
são periodicamente refeitas.
São Jerônimo realizava traduções do
hebraico e do grego para o latim. A língua para a qual traduzia era uma língua
internacional e assim permaneceu por
séculos. Escrevo este texto na nova língua internacional, língua materna de
mais de 350 milhões de pessoas e segunda língua de dezenas de milhões pelo
mundo. Esta conferência foi realizada na
Inglaterra, onde a língua em que escrevo
nasceu. Destoando do velho chiste, adoto a visão ingênua de quem não nos crê
separados por uma língua comum. E no
meu país, não chamamos de "americana" a língua falada pela maioria de nós
(embora as traduções francesas dos
meus livros registrem "traduit de l'américain"). Sempre que me sento para escrever, deslumbra-me a riqueza da língua de mil anos de idade à minha disposição. Mas o meu orgulho do inglês até
certo ponto briga com a minha consciência de outro tipo de privilégio linguístico:
o de escrever numa língua que, em princípio, todos se vêem obrigados a compreender ou se mostram desejosos de
entender.
Embora hoje seja parte indissociável
da hegemonia mundial dessa única e gigantesca superpotência, da qual sou cidadã, o predomínio da língua de Shakespeare como língua franca internacional
de certo modo foi instituído por acaso.
Aviação e informática
Um dos
momentos-chave consistiu na adoção,
nos anos 20 do século passado (salvo engano), do inglês como língua internacional da aviação civil. Para os aviões trafegarem com segurança, tanto os pilotos
quanto os responsáveis por orientar o
seu vôo precisavam falar a mesma língua. Acontecimento bem mais influente
e, a meu ver, decisivo, a ubiquidade dos
computadores -veículos de outra forma de transporte: o transporte mental-
exigiu uma língua dominante. Apesar de
as instruções na sua interface virem provavelmente no seu idioma, navegar na
internet e recorrer a ferramentas de busca, isto é, circular internacionalmente no
computador, demanda algum conhecimento de língua inglesa.
O inglês se tornou a língua comum,
unificadora de disparidades linguísticas.
A Índia tem 16 "línguas oficiais" (na verdade, falam-se muito mais línguas vernáculas) e, dada a sua atual composição
(tem 180 milhões de muçulmanos), jamais aceitará transformar a principal língua oficial, o hindi, em língua nacional. A
língua capaz de tornar-se língua nacional
não seria um idioma nativo, mas sim a
língua do conquistador, a língua da época colonial. Precisamente por ser estrangeira, pode virar a língua unificante de
uma população tão diversa: a única língua que todos os indianos podem utilizar é, tem de ser, o inglês.
Morte das línguas
O computador
apenas reforçou a primazia do inglês na
Índia globalizada. O fenômeno linguístico mais interessante de nossa era é, de
um lado, o desaparecimento de várias
línguas pouco importantes (entenda-se,
línguas faladas por populações muito reduzidas, isoladas e pobres) e, do outro, o
êxito sem igual da língua inglesa, cujo
status hoje não se compara ao de nenhuma outra língua do planeta.
O inglês agora avança por toda parte
do mundo, graças à influência da mídia
falada nessa língua, ou melhor, da mídia
na qual se fala inglês com sotaque americano, e graças à necessidade de homens
de negócios e cientistas se comunicarem
numa língua comum.
Vivemos num mundo, em vários aspectos relevantes, dominado por nacionalismos banais e, ao mesmo tempo, radicalmente pós-nacional. As barreiras
comerciais podem cair, o dinheiro pode
tornar-se multinacional (como o dólar,
moeda corrente em mais de um país latino-americano, e o euro, claro). Mas uma
característica teimosa de nossa vidas nos
circunscreve às antigas fronteiras que
tanto incomodam o capitalismo avançado, a ciência de ponta, a tecnologia de última geração e a supremacia imperial de
hoje (estilo americano de império): o fato de falarmos tantas línguas diferentes.
Daí a urgência de uma língua internacional. E que melhor candidata que o inglês?
Susan Sontag é ensaísta e escritora norte-americana, autora de "Diante da Dor dos Outros", "Na América" (ambos pela Companhia das Letras) e "Contra a Interpretação" (ed. L&PM), entre outros. Este texto foi publicado originalmente no periódico britânico "Times Literary Supplement".
Tradução de Bluma Waddington Vilar.
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