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São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

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+ cultura

A ENSAÍSTA AMERICANA DISCUTE DE QUE MANEIRA AS NOVAS "MÁQUINAS DE TRADUÇÃO" E A CONSOLIDAÇÃO DO INGLÊS COMO LÍNGUA INTERNACIONAL PODEM MODIFICAR O OFÍCIO

O EVANGELHO HEGEMÔNICO DA TRADUÇÃO

por Susan Sontag

Traduzir significa muitas coisas, entre elas fazer circular, transportar, disseminar, explicar, tornar (mais) acessível. Por "tradução literária" designamos, poderíamos designar, a tradução de um pequeno percentual dos livros publicados que de fato vale a pena ler, isto é, reler. Proponho, portanto, que, para discutir de maneira adequada a arte da tradução literária, é preciso considerá-la essencialmente uma afirmação do valor da própria literatura. Além da óbvia necessidade de contar com a eficiente mão-de-obra do tradutor para criar um estoque nesse pequeno negócio de importação-exportação em que a literatura se converte, além do indispensável papel da tradução quando se trata de fazer da literatura um esporte competitivo, jogado tanto nacional quanto internacionalmente (com rivalidades, times e prêmios lucrativos), além dos incentivos mercantis, do impulso agonístico e lúdico para traduzir, existe uma inspiração mais antiga, claramente evangélica e mais difícil de confessar nesses tempos sem fé, tempos de consciente desapego a princípios menos imediatistas.

Consenso
Segundo essa inspiração que chamei de evangélica, o propósito da tradução é ampliar o público leitor de um livro julgado importante. Nessa perspectiva, há livros nitidamente melhores que outros. Nela, o mérito literário assume forma piramidal, tornando-se imperativo franquear ao maior número possível as obras no topo da pirâmide, ou seja, traduzi-las em muitas línguas e retraduzi-las sempre que oportuno. Evidentemente, tal visão da literatura acredita na possibilidade de um consenso ao tentar decidir quais as obras fundamentais. Isso não implica pensar nesse consenso -ou cânon- como algo a ser definitivamente estabelecido, não suscetível de alterações futuras. No vértice da pirâmide, situam-se textos sagrados, como as Escrituras e livros de ensinamentos exotéricos imprescindíveis que, por definição, tinham de ser traduzidos (as traduções linguisticamente mais influentes devem ter sido as da Bíblia: a tradução de são Jerônimo, a de Lutero, a de William Tyndale, a versão King James). Traduzir é antes de mais nada divulgar melhor o que merece ser divulgado, por levar a um aprofundamento, a um apuro, a uma exaltação, por se tratar de um precioso legado da história, por contribuir para o conhecimento, sagrado ou não. No âmbito secular, via-se na tradução uma atividade benéfica ao próprio tradutor: traduzir constituía um exercício cognitivo -e ético- valioso. Numa era em que se aposta na capacidade dos computadores -"máquinas de traduzir"- de em breve realizar a maior parte dos trabalhos de tradução, a chamada tradução literária perpetua a concepção tradicional do que significa traduzir. No novo modo de ver, traduzir é encontrar equivalentes; noutras palavras, a tradução se torna um problema para o qual se podem discernir soluções. Por outro lado, na antiga visão, traduzir é fazer escolhas, escolhas conscientes e não limitadas às rígidas dicotomias de "bom" e "mau", "correto" e "incorreto", pois se realizam num universo de opções mais complexo, com distinções como "bom" versus "melhor", "melhor" versus "o melhor de todos", sem falar de oposições tão impuras quanto "antiquado" versus "atual, de última tendência", "vulgar" versus "rebuscado, pedante" e "conciso" versus "prolixo".

Princípios éticos
A tradução, entendida aqui como uma série de escolhas em sentido amplo, era a profissão de indivíduos detentores de uma cultura restrita a poucos. Traduzir de forma cuidadosa, meticulosa, com inventividade e respeito, dá a medida da lealdade do tradutor ao esforço da própria literatura. Escolhas muitas vezes consideradas meramente linguísticas sempre supõem princípios éticos, o que tornou o ofício de traduzir veículo de valores como integridade, responsabilidade, fidelidade, ousadia e humildade. A visão ética da tradução nasceu da consciência de se tratar de uma tarefa impossível, se julgarmos o tradutor capaz de tomar um texto escrito numa língua e entregá-lo noutra língua, intacto, sem perdas. Isso, obviamente, não é salientado pelos que aguardam ansiosos a obsolescência dos dilemas do tradutor, em virtude da maior proficuidade de máquinas de traduzir, melhores e mais engenhosas. A tradução literária é um ramo da literatura; nada mais distante, por conseguinte, de um trabalho mecânico.

Literalidade
Mas o que faz da tradução um esforço tão complexo são as várias condições em jogo. Há exigências derivadas da natureza da literatura enquanto forma de comunicação. No caso de uma obra reputada essencial, há o dever de torná-la conhecida do maior público possível. Há a dificuldade de passar de uma língua a outra e o embaraço decorrente da intransigência de certos textos. Pois existe algo inerente à obra e de todo alheio às intenções do autor ou ao que este consegue enxergar ali, algo que emerge quando começa o ciclo das traduções -uma qualidade chamada, na falta de outro termo, traduzibilidade. Essa complicada rede de questões costuma ser reduzida ao eterno debate entre os tradutores -a polêmica em torno da literalidade-, que remonta pelo menos à Roma Antiga, quando a literatura grega era traduzida em latim, e continua a afligir tradutores de todas as nacionalidades (há, aliás, diferentes tradições e preconceitos nacionais acerca do tema). A mais longeva controvérsia no campo das traduções é sobre o papel da exatidão e da fidelidade. Sem dúvida existiram tradutores no mundo antigo adeptos de uma fidelidade literal estrita (dane-se a eufonia!), posição defendida de forma admiravelmente obstinada por Vladimir Nabokov no comentário à sua tradução do "Eugênio Oniéguin", de Puchkin. De outro modo, como explicar o audacioso e insistente argumento de são Jerônimo (331-420), primeiro intelectual da Antiguidade (até onde sei) a refletir extensamente sobre tradução, de que o resultado inevitável de ter em mira uma reprodução fiel das palavras e imagens do autor é sacrificar o sentido e a elegância?

Exercício para a mente
Isso está no prefácio que Jerônimo escreveu à sua tradução latina da "Crônica" de Eusébio (260-340), teólogo, historiador e bispo de Cesaréia (traduziu essa história da igreja cristã em 381-2, quando residia em Constantinopla a fim de participar do concílio. Seis anos antes, vivera em Belém, no intuito de aprimorar o seu conhecimento de hebraico. E quase uma década antes iniciara o empreendimento histórico de traduzir a Bíblia hebraica para o latim).
A respeito dessa primeira tradução do grego anotou: "Há muito tempo é uma prática corriqueira entre os eruditos exercitar as suas mentes vertendo para o latim as palavras de escritores gregos e, tarefa ainda mais difícil, traduzindo poemas de autores ilustres, embora as exigências adicionais do verso atrapalhem. Assim, nosso Cícero traduziu livros inteiros de Platão (...) e mais tarde se divertiu com Xenofonte. Nessa última tradução, o rio dourado da eloquência encontra a todo momento novos obstáculos, contra os quais as suas águas quebram, produzindo tamanha espuma que os que desconhecessem aquele original não acreditariam estar lendo palavras de Cícero. Nada surpreendente! É duro acompanhar o percurso de outro escritor. É tarefa árdua manter incólumes ao traduzir a felicidade de expressão e a elegância. Um escritor escolheu um palavra capaz de expressar com força um determinado pensamento, e não disponho de nenhum termo que transmita tal significado. Enquanto procuro satisfazer o aspecto semântico, posso caminhar longamente, mas avançar bem pouco nessa jornada. É preciso levar em conta os acréscimos e as subtrações da transposição, a variedade de casos, a diversidade de figuras e, por fim, as características peculiares do idioma nativo. Uma tradução literal soa absurda; mas, se eu tiver de mudar ou a ordem dos termos ou as próprias palavras, julgarão que descurei da obrigação de um tradutor" (da versão para o inglês de W.H. Fremantle, 1982).


Assim como o balé clássico, a tradução literária é uma arte de repertório; obras de grande relevo são periodicamente refeitas


"Ênfase do conjunto"
Impressiona, nessa passagem de autojustificação, a tentativa de levar os leitores a compreender como é desalentador o trabalho de tradução literária. Mais adiante no mesmo prefácio, Jerônimo manifesta uma insatisfação comum a todos que já se aventuraram a traduzir. Falando da Bíblia hebraica, ou seja, do Velho Testamento, ele antecipa a sua futura faina, pois seria mais trabalhoso (aqui temos de nos fiar em seu testemunho) traduzir o hebraico bíblico para o latim do que traduzi-lo para o grego: "O que pode ser mais grave que as palavras de Salomão? Mais perfeito que o livro de Jó? (...) Quando lidos em grego, fazem sentido; já em latim, exibem uma total incoerência. Se alguém imaginar, porém, que a elegância da linguagem não sofre com a tradução, deixemos que traduza palavra a palavra um texto de Homero para o latim. E digo mais: se traduzisse esse autor na prosa da sua própria língua, a ordem das palavras pareceria ridícula, e, os poetas mais eloquentes, quase estúpidos (...)". Qual a melhor maneira de lidar com essa radical impossibilidade de tradução? Para Jerônimo, não há dúvida de como proceder, segundo ele mesmo explica repetidas vezes nos prefácios às suas muitas traduções. Na carta a Pamáquio, escrita em 395, declara só haver um modo acertado de traduzir: "Preservando o sentido e alterando a forma mediante a adaptação das metáforas e das palavras à sua própria língua. Não achei necessário verter palavra por palavra, mas reproduzi o estilo e as ênfases do conjunto (...)". Mais adiante, na mesma carta -e só podemos inferir que são Jerônimo estava respondendo a críticos e opositores crônicos-, proclama desafiadoramente: "A tradução literal de uma língua para outra obscurece o sentido". Se isso faz do tradutor um co-autor do livro, ótimo. "Realizo em parte o ofício de um tradutor e em parte o de um escritor", escreve são Jerônimo no prefácio à "Crônica" de Eusébio. A questão dificilmente seria formulada de maneira mais direta e relevante para as reflexões contemporâneas. Até que ponto o tradutor está autorizado a adaptar, isto é, recriar o texto na língua para a qual este será traduzido? Se a fidelidade palavra a palavra e a excelência literária são incompatíveis, quão "livre" pode ser uma tradução responsável? Será mesmo a primeira tarefa do tradutor apagar a estrangeirice de um texto e remodelá-lo segundo as normas da nova língua? Todo tradutor sério se amofina com tais questões: como o balé clássico, a tradução literária tem padrões nada realistas, ou seja, padrões tão severos que estão fadados a causar frustração, a gerar nos profissionais mais ambiciosos uma sensação de fracasso por julgarem as suas traduções raramente à altura dos originais. Bailarinos são treinados para exaurir-se em vista do objetivo, não de todo quimérico, da perfeição de uma expressividade exemplar e sem falhas. Na tradução literária só pode haver um desempenho excelente, notável, nunca perfeito. Por natureza, traduzir sempre envolve perder algo da substância original.

Provisório
Mais cedo ou mais tarde todas as traduções se revelam imperfeitas e, em última análise, até no caso das mais admiráveis e modelares, passam a provisórias. Assim como o balé clássico, a tradução literária é uma arte de repertório. Obras estimadas de grande relevo são periodicamente refeitas. São Jerônimo realizava traduções do hebraico e do grego para o latim. A língua para a qual traduzia era uma língua internacional e assim permaneceu por séculos. Escrevo este texto na nova língua internacional, língua materna de mais de 350 milhões de pessoas e segunda língua de dezenas de milhões pelo mundo. Esta conferência foi realizada na Inglaterra, onde a língua em que escrevo nasceu. Destoando do velho chiste, adoto a visão ingênua de quem não nos crê separados por uma língua comum. E no meu país, não chamamos de "americana" a língua falada pela maioria de nós (embora as traduções francesas dos meus livros registrem "traduit de l'américain"). Sempre que me sento para escrever, deslumbra-me a riqueza da língua de mil anos de idade à minha disposição. Mas o meu orgulho do inglês até certo ponto briga com a minha consciência de outro tipo de privilégio linguístico: o de escrever numa língua que, em princípio, todos se vêem obrigados a compreender ou se mostram desejosos de entender. Embora hoje seja parte indissociável da hegemonia mundial dessa única e gigantesca superpotência, da qual sou cidadã, o predomínio da língua de Shakespeare como língua franca internacional de certo modo foi instituído por acaso.

Aviação e informática
Um dos momentos-chave consistiu na adoção, nos anos 20 do século passado (salvo engano), do inglês como língua internacional da aviação civil. Para os aviões trafegarem com segurança, tanto os pilotos quanto os responsáveis por orientar o seu vôo precisavam falar a mesma língua. Acontecimento bem mais influente e, a meu ver, decisivo, a ubiquidade dos computadores -veículos de outra forma de transporte: o transporte mental- exigiu uma língua dominante. Apesar de as instruções na sua interface virem provavelmente no seu idioma, navegar na internet e recorrer a ferramentas de busca, isto é, circular internacionalmente no computador, demanda algum conhecimento de língua inglesa. O inglês se tornou a língua comum, unificadora de disparidades linguísticas. A Índia tem 16 "línguas oficiais" (na verdade, falam-se muito mais línguas vernáculas) e, dada a sua atual composição (tem 180 milhões de muçulmanos), jamais aceitará transformar a principal língua oficial, o hindi, em língua nacional. A língua capaz de tornar-se língua nacional não seria um idioma nativo, mas sim a língua do conquistador, a língua da época colonial. Precisamente por ser estrangeira, pode virar a língua unificante de uma população tão diversa: a única língua que todos os indianos podem utilizar é, tem de ser, o inglês.

Morte das línguas
O computador apenas reforçou a primazia do inglês na Índia globalizada. O fenômeno linguístico mais interessante de nossa era é, de um lado, o desaparecimento de várias línguas pouco importantes (entenda-se, línguas faladas por populações muito reduzidas, isoladas e pobres) e, do outro, o êxito sem igual da língua inglesa, cujo status hoje não se compara ao de nenhuma outra língua do planeta.
O inglês agora avança por toda parte do mundo, graças à influência da mídia falada nessa língua, ou melhor, da mídia na qual se fala inglês com sotaque americano, e graças à necessidade de homens de negócios e cientistas se comunicarem numa língua comum.
Vivemos num mundo, em vários aspectos relevantes, dominado por nacionalismos banais e, ao mesmo tempo, radicalmente pós-nacional. As barreiras comerciais podem cair, o dinheiro pode tornar-se multinacional (como o dólar, moeda corrente em mais de um país latino-americano, e o euro, claro). Mas uma característica teimosa de nossa vidas nos circunscreve às antigas fronteiras que tanto incomodam o capitalismo avançado, a ciência de ponta, a tecnologia de última geração e a supremacia imperial de hoje (estilo americano de império): o fato de falarmos tantas línguas diferentes. Daí a urgência de uma língua internacional. E que melhor candidata que o inglês?

Susan Sontag é ensaísta e escritora norte-americana, autora de "Diante da Dor dos Outros", "Na América" (ambos pela Companhia das Letras) e "Contra a Interpretação" (ed. L&PM), entre outros. Este texto foi publicado originalmente no periódico britânico "Times Literary Supplement".
Tradução de Bluma Waddington Vilar.


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