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Ponto de fuga
O calor e a arte
Jorge Coli
especial para a Folha
A maior bienal de todos os tempos. Mais de 60 países
representados. Quase 400 artistas. Só um devoto das belas-artes contemporâneas dedicaria as semanas e semanas necessárias para tudo ver, com meditação e profundidade. O visitante comum erra nos jardins, no Arsenal,
no museu Correr, que abrigam os conjuntos principais
da mostra. Descobre exposições esparsas em meio ao
labirinto das ruelas, das pontes, dos canais.
Velha dama, mais que centenária, a Bienal de Veneza
2003 é a de número 50. Nela paira uma sensação descorçoada que fez um crítico perguntar: essa falta de entusiasmo viria do calor opressivo, que não dá tréguas, ou
da arte ali reunida, incapaz de inspirar novas maneiras
de ver e de pensar?
O título, ou tema geral, é "Sonhos e Conflitos - A Ditadura do Espectador". Palavras fortes, de efeito, não
muito fáceis de serem compreendidas, sobretudo depois que se percorrem os módulos mais importantes.
Curiosa, a idéia de ditadura do espectador, mote presente nos meios da arte contemporânea destes últimos
tempos. O espectador, na verdade, não dita nada. Ele
passa de artista em artista (já que, mesmo nessa mostra
que se quer difusa, o artista continua sendo a unidade
primordial), esperando ser tocado, esperando encontrar uma emoção, um entusiasmo. De quando em
quando, esse esforço é coroado de sucesso. Pouca coisa,
em relação a grande massa das obras. No mais das vezes, elas parecem fazer um apelo um pouco vão, raramente correspondido: olhem-me, vejam como sou interessante, como sou inteligente.
Oásis - O calor derreia. Basta observar, no entanto, a
meia dúzia de turistas suando em bicas, mas deslumbrada diante dos Carpaccio nos Schiavoni, ou os visitantes da Galleria dell'Accademia (uma caldeira infernal, onde sabe Deus por qual milagre os quadros não
derretem), fascinados diante dos Bellini ou dos Giorgione, para compreender que eles esqueceram o desconforto. Na Bienal, não é o calor que desanima.
Dito isso, vale a pena visitar essa grande exposição das
artes contemporâneas? Vale sim. Não só porque os jardins são aprazíveis: foi ali que cada país construiu, ao
longo do século 20, seu pavilhão, para hospedar, a cada
dois anos, a produção de seus maiores artistas. Não apenas porque os hangares dos antigos Arsenais, que abrigam o segundo grande módulo da mostra, exibem uma
arquitetura rude e impressionante. Mas porque, na falta
de uma vibração criadora maior, a bienal, bem ou mal,
revela a tentativa comovente de perseverar a tradição
artística no mundo contemporâneo. Algo de residual,
talvez, algo de incerto.
Muitas vezes resumindo-se a um exercício teórico, explicado nas etiquetas que acompanham as obras como
bulas, descrevendo intenções prodigiosas que não
acontecem. Porém, aqui e ali, acende-se uma centelha
de fascínio.
Cadências - O museu Correr, na praça São Marcos,
apresenta o grande núcleo histórico da bienal. Abriga
uma retrospectiva de pintura, que vai de Rauschenberg
a Murakami, ou seja, de 1964 (quando Rauschenberg
ganhou o prêmio da bienal, assinalando a força da pintura americana sobre a européia) a 2003. Mal escolhidas
e dispostas sem critério convincente, as telas se sucedem, desiguais em qualidade. Representam mais ou
menos bem os artistas. Algumas são formidáveis, como
a "Vucciria", de Guttuso, outras são bem secundárias.
Tentam constituir um laborioso panorama, antologia
mista de Europa e América, que resulta em disparate.
Formam um conjunto desastrado. Deve vir para o Brasil no ano que vem.
Chocho - O prêmio de melhor pavilhão da Bienal de
Veneza coube ao Luxemburgo. Nele, expõe uma jovem
artista, Su-Mei Tse. Vêem-se ampulhetas, um tricô
abandonado. Num vídeo, vários varredores passam
suas vassouras nas areias de um deserto, incansáveis e
sem sair do lugar. Em outro, de costas, uma violoncelista toca seu instrumento diante de montanhas. Su-Mei
Tse é violoncelista ela própria. Sua instalação se intitula
"Air Conditioned". Tem um certo chique elegante e dela emana um leve perfume poético.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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