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São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

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Ponto de fuga

O calor e a arte

Jorge Coli
especial para a Folha

A maior bienal de todos os tempos. Mais de 60 países representados. Quase 400 artistas. Só um devoto das belas-artes contemporâneas dedicaria as semanas e semanas necessárias para tudo ver, com meditação e profundidade. O visitante comum erra nos jardins, no Arsenal, no museu Correr, que abrigam os conjuntos principais da mostra. Descobre exposições esparsas em meio ao labirinto das ruelas, das pontes, dos canais.
Velha dama, mais que centenária, a Bienal de Veneza 2003 é a de número 50. Nela paira uma sensação descorçoada que fez um crítico perguntar: essa falta de entusiasmo viria do calor opressivo, que não dá tréguas, ou da arte ali reunida, incapaz de inspirar novas maneiras de ver e de pensar?
O título, ou tema geral, é "Sonhos e Conflitos - A Ditadura do Espectador". Palavras fortes, de efeito, não muito fáceis de serem compreendidas, sobretudo depois que se percorrem os módulos mais importantes. Curiosa, a idéia de ditadura do espectador, mote presente nos meios da arte contemporânea destes últimos tempos. O espectador, na verdade, não dita nada. Ele passa de artista em artista (já que, mesmo nessa mostra que se quer difusa, o artista continua sendo a unidade primordial), esperando ser tocado, esperando encontrar uma emoção, um entusiasmo. De quando em quando, esse esforço é coroado de sucesso. Pouca coisa, em relação a grande massa das obras. No mais das vezes, elas parecem fazer um apelo um pouco vão, raramente correspondido: olhem-me, vejam como sou interessante, como sou inteligente.

Oásis - O calor derreia. Basta observar, no entanto, a meia dúzia de turistas suando em bicas, mas deslumbrada diante dos Carpaccio nos Schiavoni, ou os visitantes da Galleria dell'Accademia (uma caldeira infernal, onde sabe Deus por qual milagre os quadros não derretem), fascinados diante dos Bellini ou dos Giorgione, para compreender que eles esqueceram o desconforto. Na Bienal, não é o calor que desanima.
Dito isso, vale a pena visitar essa grande exposição das artes contemporâneas? Vale sim. Não só porque os jardins são aprazíveis: foi ali que cada país construiu, ao longo do século 20, seu pavilhão, para hospedar, a cada dois anos, a produção de seus maiores artistas. Não apenas porque os hangares dos antigos Arsenais, que abrigam o segundo grande módulo da mostra, exibem uma arquitetura rude e impressionante. Mas porque, na falta de uma vibração criadora maior, a bienal, bem ou mal, revela a tentativa comovente de perseverar a tradição artística no mundo contemporâneo. Algo de residual, talvez, algo de incerto. Muitas vezes resumindo-se a um exercício teórico, explicado nas etiquetas que acompanham as obras como bulas, descrevendo intenções prodigiosas que não acontecem. Porém, aqui e ali, acende-se uma centelha de fascínio.

Cadências - O museu Correr, na praça São Marcos, apresenta o grande núcleo histórico da bienal. Abriga uma retrospectiva de pintura, que vai de Rauschenberg a Murakami, ou seja, de 1964 (quando Rauschenberg ganhou o prêmio da bienal, assinalando a força da pintura americana sobre a européia) a 2003. Mal escolhidas e dispostas sem critério convincente, as telas se sucedem, desiguais em qualidade. Representam mais ou menos bem os artistas. Algumas são formidáveis, como a "Vucciria", de Guttuso, outras são bem secundárias. Tentam constituir um laborioso panorama, antologia mista de Europa e América, que resulta em disparate. Formam um conjunto desastrado. Deve vir para o Brasil no ano que vem.

Chocho - O prêmio de melhor pavilhão da Bienal de Veneza coube ao Luxemburgo. Nele, expõe uma jovem artista, Su-Mei Tse. Vêem-se ampulhetas, um tricô abandonado. Num vídeo, vários varredores passam suas vassouras nas areias de um deserto, incansáveis e sem sair do lugar. Em outro, de costas, uma violoncelista toca seu instrumento diante de montanhas. Su-Mei Tse é violoncelista ela própria. Sua instalação se intitula "Air Conditioned". Tem um certo chique elegante e dela emana um leve perfume poético.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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