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+ cinema
O diretor austríaco, que virá a SP para apresentar uma retrospectiva de seus
filmes, defende que a TV potencializou os recursos expressivos da sétima arte
O êxtase orgíaco da repetição
Bernardo Vorobow
Carlos Adriano
especial para a Folha
Peter Kubelka (Viena, 1934) é um dos artistas-pensadores
mais inventivos, rigorosos e perfeccionistas do cinema
atual. Seus elaborados curtas -como "Schwechater"
(1957-1958), "Arnulf Rainer" (1958-1960) e "Unsere
Afrikareise" (1961-1966)- ocupam, com impacto decisivo, o lapso entre as vanguardas dos anos 20/30 e dos
anos 60/70.
Kubelka virá pela primeira vez ao Brasil para participar da retrospectiva "Peter Kubelka - A Essência do Cinema", que o Centro Cultural Banco do Brasil/SP (0/
xx/11/3113-3651) e a Associação Cultural Babushka
apresentam de 10 a 17 de dezembro.
Na entrevista abaixo o diretor austríaco defende que a
palavra-chave do cinema é "entre" (o cinema articula os
elementos). Estruturados de forma precisa, na escala do
fotograma (informações visuais e sonoras a 1/24 de segundo), seus filmes expandem a experiência irredutível
do cinema para outras esferas: música,
poesia, pintura e cozinha como forma de
arte.
Como o sr. define o cinema?
Aqui temos o mesmo problema de uma
gramática da língua. Há dois gêneros de
gramática: uma gramática normativa,
que diz como a língua deve ser, e uma
gramática descritiva, que descreve como
a língua se desenvolve.
Descrever o cinema como gramática normativa não faz sentido, porque o cinema não é definido
de antemão. Definir o cinema como gramática descritiva pode somente descrever o passado até hoje. Mas eu
mesmo não tenho a opinião de que o cinema está morto.
Apenas quando uma língua está morta, como o latim,
podemos verdadeiramente descrever o que é essa língua.
Eu sempre gostei de experimentar a essência do cinema.
Cada disciplina (pintura, literatura, cinema) não é isolada, sobrepõe-se a outras disciplinas. Sempre me interessei pelas qualidades essenciais e únicas de um meio e
sempre acreditei que o cinema tem possibilidades de
ampliar o pensamento, adicionando novos aspectos que
outras disciplinas não podem acrescentar.
Isso é demonstrável até fisicamente, não?
A imagem cinematográfica não é boa, não pode comparar-se à pintura. O cineasta não pode concorrer com o
pintor no campo da imagem. Mas eu posso dar 24 informações visuais por segundo, precisamente, no espaço
do tempo.
Essa é uma possibilidade de trabalhar o espaço, o tempo
visual, de uma maneira que nenhuma outra disciplina
pode avizinhar-se. Uma possibilidade essencial do cinema, segundo minha concepção, é a velocidade visual, a
precisão do posicionamento dessas informações visuais
no tempo.
Qual a contribuição do fato sonoro?
O cinema sonoro permite um encontro de imagem e
som no tempo, ao mesmo tempo, em precisão absoluta.
Eu posso decidir que um certo som encontra uma certa
imagem num certo ponto no tempo. E essa possibilidade é a possibilidade de falar, de criar metáforas, de uma
maneira que nenhum outro meio pode fazer. O cinema
sonoro pode estabelecer uma linguagem puramente cinematográfica. Isso eu realizo com meu filme "Unsere
Afrikareise", onde usei todas as possibilidades complexas entre imagem e som sincrônicos.
A glória do cinema sonoro não é poder representar o
som natural ou o visual natural. Isso não é interessante; a
natureza constrange sempre essa lei contemporânea do
som. A glória do cinema sonoro é poder separar (separar fenômenos da natureza, separar o som da imagem) e
poder compor síntese novamente, segundo o desejo do
cineasta.
O que faz do cinema algo singular?
A palavra mais importante no cinema, a palavra-chave
é: "entre". O cinema se articula entre os elementos, entre
som e outro som, entre imagem e outra imagem, entre
som e imagem entre. O cinema, hoje, talvez seja a mais
profunda possibilidade de se concentrar a opinião de
um autor, sem dispersar sua atenção. O
cinema se desenvolve num ambiente sem
luz, escuro. E uma pessoa que se entrega a
um autor no cinema se concentra de uma
maneira como em nenhum outro meio.
Esse aspecto se tornou bem definido somente depois da aparição da televisão.
Quando fiz meus filmes muito curtos,
não pensei num espetáculo de duas horas, mas num período no tempo de vida
de uma pessoa muito concentrado, essencial, elevado, que dura pouco. Como
um orgasmo, uma coisa curta, definida, que pode ser repetida. Outro aspecto do meu cinema é a concentração,
a complexidade, o êxtase que estimula o desejo de repetir.
Muito tipicamente, as coisas que se vêem na televisão,
nenhuma pessoa quer ver duas vezes. É superficial, descarta-se. Já o poema... Por toda uma vida podemos estar
com um poema. Essa qualidade o cinema comercial ignora: a possibilidade de fazer obras complexas, curtas,
como um poema.
"Schwechater" radicalizou o processo...
Esse foi o filme mais guerrilheiro que fiz. Era uma encomenda oficial de uma grande companhia de cerveja na
Áustria, e seus proprietários eram conhecidos como colecionadores no mundo das artes. Graças à "fama" dos
meus filmes e também a recomendações dos artistas
mais importantes da Áustria naquele momento, essa
gente me propôs fazer um filme publicitário.
Queriam um filme conservador, lento, e eu fiz o filme...
que ficou conhecido. Foi um grande escândalo. Eu tive
que sair da Áustria, porque tudo se fechou para mim.
Fui para a Suécia por um ano, completamente isolado.
Com "Arnulf Rainer" eu perdi amigos, artistas, porque
não compreenderam o filme.
Qual a diferença em trabalhar com cinema, com música ou com cozinha?
Quando eu trabalho com cozinha é exatamente como se
eu trabalhasse com um filme ou como se trabalhasse
com música. A cozinha é uma forma de arte tanto quanto qualquer outra forma de arte reconhecida como tal. O
que significa que, enquanto trabalha, você tem que estar
constantemente atento ao que faz e tem sempre que
pensar no que vai realizar -você trabalha para isso.
A cozinha é muito arcaica, você não tem que esperar
tanto até ter o resultado acabado, como quando você faz
um filme. Fazer um filme pode levar anos, até estar terminado, e até então é sempre esperar e esperar, trabalhando e imaginando como será.
Isso é um fato, um sinal da cultura na qual nós vivemos,
a saber: para realizar alguma coisa, você tem que sacrificar, tem que esperar, não pode ter prazer imediatamente.
Bernardo Vorobow e Carlos Adriano são curadores da mostra e autores do livro "Peter Kubelka - A Essência do Cinema" (ed. Babushka),
de que faz parte a íntegra desta entrevista.
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