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+ cultura digital
Criada a partir do termo "copyright", a noção de "copyleft" representa
uma flexibilização da idéia de direito autoral herdada do século 19
A revolução das formas colaborativas
Ronaldo Lemos
especial para a Folha
O surrealismo é um movimento
pela liberação da mente que
enfatiza os poderes críticos e
imaginativos do inconsciente".
Esse trecho não é de minha autoria. Ele
consta no verbete "surrealismo" da enciclopédia "Wikipedia". Se você achar que
o texto não define adequadamente o surrealismo, não se acanhe. Você pode modificá-lo imediatamente. Basta ir ao website da "Wikipedia", uma enciclopédia
on-line, e clicar na opção "editar esta página", introduzindo a seguir as alterações que quiser.
Com mais de 230 mil verbetes, a diferença entre a "Wikipedia" e uma enciclopédia tradicional é que ela não possui um
conselho editorial. Ela é construída integralmente a partir da colaboração de
pessoas de todo o mundo, que livremente criam novos verbetes e alteram os antigos. O resultado, de excelente qualidade, está on-line para quem quiser conferir (www.wikipedia.com). Há inclusive
planos para o lançamento de uma versão
impressa, que será vendida em livrarias,
mas mantendo o direito de copiar, redistribuir e alterar seu texto.
A "Wikipedia" só existe por causa do
chamado "copyleft", uma brincadeira
(que se tornou séria) com o termo
"copyright". O "copyleft" significa liberdade para copiar, distribuir e modificar,
desde que tudo que for agregado ao trabalho também continue da mesma forma livre. A idéia surgiu mais ou menos
assim: no início da década de 80, um programador chamado Richard Stallman,
indignado com a decisão da AT&T de
proibir acesso amplo ao sistema operacional Unix, resolveu ele próprio escrever um sistema operacional e garantir
que ele continuasse aberto, podendo ser
modificado, copiado e redistribuído,
desde que as pessoas que o modificassem subseqüentemente também o mantivessem "livre".
Sempre aberto
Nascia assim o sistema operacional chamado GNU, que veio
a gerar o GNU/Linux (como os entendidos chamam o Linux). A grande peculiaridade desse sistema é que a colossal tarefa de desenvolvê-lo é distribuída entre
colaboradores de todo o mundo, que, tal
como a "Wikipedia", testam, aperfeiçoam e modificam o software, desde que
ele permaneça aberto.
Além da "Wikipedia", do GNU/Linux
e da miríade de outros programas de
computador livres, há vários outros projetos colaborativos em curso. Existe um
projeto de catalogação das crateras do
planeta Marte mantido pela Nasa a partir
das fotos enviadas pela sonda Viking.
O projeto já catalogou mais de 1,2 milhão de crateras e continua aberto para
qualquer pessoa analisar as fotografias
do planeta e contribuir na catalogação.
Outro é o projeto Kuro5hin, uma revista de tecnologia e cultura cuja íntegra da
produção editorial é feita por meio de
um sofisticado trabalho cooperativo
(www.kuro5hin.org).
O motor dessa revolução colaborativa
é o "copyleft". Ele representa uma flexibilização, feita de baixo para cima, da
idéia de direito autoral que herdamos do
século 19. Enquanto as obras precisavam
de suporte físico, o direito autoral propiciava os incentivos e a proteção adequada para fomentar sua circulação. Esses
incentivos consistem em um grande
"não!", ou seja, qualquer obra já nasce
com "todos os direitos reservados". Isso
se aplica até mesmo a rabiscos feitos em
um guardanapo: quem quiser colocá-los
na internet (hipótese remota, mas vá lá)
também precisa de autorização prévia.
Surge assim uma cadeia de intermediários que cuidam dessas autorizações,
agenciando predominantemente apenas
obras com valor comercial.
Assim, com o desaparecimento do suporte físico, no final do século 20 esse direito autoral tradicional passou de agente propulsor da circulação da cultura a
seu principal inibidor.
A promessa da internet de digitalizar,
preservar e transmitir toda nossa cultura, na íntegra, para as gerações futuras
simplesmente não aconteceu. Como é
impossível obter as permissões jurídicas
necessárias para digitalizar a maior parte
da informação, estamos preservando para as futuras gerações apenas uma pequena parcela cultural, sobretudo aquela
que tem valor comercial, e perdendo todo o resto, que se deteriora juntamente
com seu suporte físico.
A reação a isso surgiu com inspiração
no software livre: inúmeros autores perceberam o dilema e passaram a desejar
que suas obras pudessem ser acessadas,
distribuídas e copiadas. Desejar até
mesmo a modificação, aperfeiçoamento e reconstrução do seu trabalho, como nos exemplos acima.
Para esses autores, surgiram iniciativas como o projeto sediado na Universidade Stanford chamado Creative
Commons (www.creativecommons.org), representado no Brasil pelo
Centro de Tecnologia e Sociedade da
Escola de Direito da Fundação Getúlio
Vargas (FGV-RJ). Ele cria instrumentos (licenças) para que um autor sinalize ao mundo, de modo claro e preciso,
que sua criação é livre para distribuição, cópia e utilização, eliminando intermediários.
O criador pode permitir, se quiser, alguns ou todos desses direitos, bem como a reconstrução do seu trabalho, por
meio de remix, colagens, mesclagens e
"sampling", gerando um poder revitalizador inacreditável e rompendo as
barreiras entre autor e público.
Evolução do capitalismo
Um aspecto muito importante do "copyleft" é
que ele não representa um rompimento com a lógica capitalista, mas sim
uma evolução (ou revolução) feita dentro de seu próprio sistema. Software livre e cultura livre dão dinheiro, sim.
Não por acaso a IBM e, mais recentemente, a Novell estão focando o desenvolvimento de produtos licenciados
sob "copyleft". Aquela já investiu alguns bilhões de dólares no Linux. Com
isso obtém retorno vendendo serviços
e configurações especiais de hardware.
Esta está seguindo o mesmo caminho.
Na música, o rapper Jay-Z liberou recentemente todos os vocais de seu álbum de despedida para a recriação de
outros artistas. Dentre os resultados,
misturas do rapper com os Beatles ou
mesmo com Metallica.
No Brasil, a banda pernambucana
Mombojó liberou seu excelente disco
de estréia, "Nadadenovo", na internet.
A banda está escalada para tocar na
noite mais importante do Curitiba Pop
Festival, festival cujos 6.000 ingressos se
esgotaram em menos de quatro horas.
Nos EUA, o escritor Cory Doctorow
vendeu mais de 10 mil cópias impressas
de seu primeiro livro, colocando-o livremente para download na internet.
Seu segundo livro, recém-lançado, repete a mesma política.
Em outras palavras, não se trata de repudiar o direito autoral como um todo,
mas de restabelecer o balanço para devolvê-lo à sua função originária de propulsor cultural. Decai um modelo de
negócios, surgem vários outros em paralelo. E socialmente mais benéficos,
porque garantem a principal premissa
para inovar e criar: acesso sem fronteiras à informação.
Em paralelo a essa revolução, o direito autoral segue caminho diverso, tornando-se cada vez mais fiel à sua imagem forjada no século 19. Nos EUA, o
prazo de proteção autoral, que era originalmente de 14 anos, foi sucessivamente ampliado até chegar a 70 e, em
1998, estendido para 90, por pressão de
grupos de mídia como a Disney. O ratinho Mickey, que cairia em domínio público em 2003, ganhou uma sobrevida
no cativeiro por mais 20 anos. E com ele
levou a obra de George Gershwin e todos os outros bens culturais que teriam
caído em domínio público não fosse a
mudança na lei. Estima-se que a maior
parte deles irá se perder, pois não há
fundos nem gente o suficiente para destrinchar o labirinto de autorizações para restaurar seus suportes ou fazer sua
digitalização.
Os ventos da globalização sopram
forte sobre o Brasil e com eles trazem
pressões vindas de todos os lados para
enrijecer nossa legislação autoral, como se a mesma já não fosse severa o
bastante. Resta saber se em uma sociedade culturalmente tão rica quanto a
brasileira e, ao mesmo tempo, tão carente de meios que possam fazer essa
cultura emergir, saberemos optar pelos
interesses que verdadeiramente nos dizem respeito e fazer com que o direito
autoral se modifique, sim, mas para ser
um instrumento de transição para o futuro, e não meramente um mecanismo
de preservação do passado.
Ronaldo Lemos é mestre em direito pela Universidade Harvard e diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Escola de Direito da
Fundação Getúlio Vargas (RJ).
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