São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

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EM "O FALSO MENTIROSO", SILVIANO SANTIAGO PARTE DA LIGAÇÃO ENTRE AS FIGURAS DAS MEMÓRIAS E DA SEMENTE PARA EMBARALHAR OS ESTATUTOS DA FICÇÃO E DA MENTIRA

A autobiografia como preservativo

Não se trata de estipular uma existência ficcional nem de falar da vida como se fosse ficção, mas de encarar a própria existência condenada à ficção

Abel Barros Baptista
especial para a Folha

O Falso Mentiroso" não é decerto um romance machadiano (aliás, a designação "romance machadiano", em rigor, carece de sentido), mas desconheço outro que tenha levado tão longe o ensinamento crucial de Brás Cubas, a saber: que, nas memórias autobiográficas, a condição póstuma não é uma extravagância, antes a regularidade; que a autobiografia é sempre e paradoxalmente autobiografia de outro; que a ficção contamina a autobiografia de modo necessário e que a torna dela inextricável. Além disso, chegando ao termo do livro, o leitor atual, escolarizado, reconhecerá nas últimas frases -"Lego ao mundo as minhas telas. À história, uma família a menos"- algum eco da derradeira linha das "Memórias Póstumas", a conhecida "não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria".
Na verdade, o legado é motivo inerente à operação das memórias. Este livro, consistindo em "memórias", do sujeito e legado do sujeito, trata do pai e do filho, da possibilidade de o pai gerar o filho, de o filho ser gerado pelo pai e por sua vez gerar outros filhos, mas também da possibilidade de o filho gerar o pai e outros pais: trata, por isso, da semente e do legado da semente, da semente do pai que se espalha, da semente que insemina e da que contamina, da semente que se perde ou desperdiça, que se retém ou nega. Numa palavra, trata do preservativo -das memórias enquanto preservativo.
A quem parecer estrambótica essa cadeia associativa, não me resta senão sugerir que leia "O Falso Mentiroso" e esqueça a resenha. A sugestão também vale para os outros, claro. Entretanto insisto em que, a meu ver, o livro de Silviano Santiago se estrutura na ligação entre duas figuras: a das memórias e a da semente.
As memórias, essas percebemos depressa que são falsas: memórias falsas, o que é diferente de falsas memórias. Ao cabo de 20 páginas, o memorialista apresenta-se ao leitor, reconhecendo que o faz com atraso: chama-se Samuel, não Silviano. As memórias, portanto, são de Samuel, não de Silviano: "O Falso Mentiroso" seria então um romance, ficção de narração autobiográfica imputada a Samuel, não a Silviano. O pai de Samuel não seria o pai de Silviano. Tudo se complica, entretanto, quando aprendemos -e isso desde a primeira página- que o pai de Samuel pode não ser o pai de Samuel: é e será sempre assim reputado, ora o falso pai, ora o pai falso, por oposição ao verdadeiro, esse desconhecido ou improvável. Quem nos assegura, então, de que o falso pai de Samuel não é o verdadeiro pai de Silviano? O mesmo é perguntar: quem nos assegura que as memórias de Silviano não estão tão expostas quanto dissimuladas na ficção que as dá enquanto memórias de Samuel?
Essas perguntas são pertinentes, corretas, aliás necessárias. Pressupondo sempre a ficção, presumem que o intuito de Silviano seria ou fingir que escreve as memórias de outro ou fingir que não escreve as próprias. Talvez se confundam no resultado, mas os dois fingimentos são heterogêneos. No primeiro, o escritor protege-se com o estatuto social da ficção: nada do que diz Samuel lhe pode ser imputado. Já o segundo não o protege senão com a suspeita insinuada pela dissimulação: o que diz Samuel pode ou não ser memória do próprio Silviano. Ora, o ponto está em que esta segunda possibilidade, em princípio eliminada pelo uso regular da ficção de memórias, vem requerida pela estrutura do título do livro. "O Falso Mentiroso - Memórias": diferente de, por exemplo, "Memórias dum Falso Mentiroso". Nada a ver, nesse aspecto, com "Memórias Póstumas de Brás Cubas" ou "Memórias Sentimentais de João Miramar", títulos em que a palavra "memórias", sem deixar de designar um gênero específico, é absorvida pela ficção. A particularidade de "O Falso Mentiroso" está em que a palavra "memórias" se destaca do título por força de convenção iniludível que a faz funcionar como indicador de gênero; tal como, por exemplo, no caso de "Ensaio sobre a Lucidez - Romance", em que tudo pertence ou pode pertencer ao domínio da ficção, exceto a palavra "romance" anexa ao título. Daí que a indicação de "memórias" se presuma efetiva, não ficcional, não fingida, não enganadora: valendo, pois, como promessa de fidelidade à memória, aos factos biográficos, à veracidade básica da vida.
Promessa de que a substituição do nome próprio é o primeiro e decisivo incumprimento: o sinal inequívoco da definitiva renúncia a cumpri-la. O título começa aqui a ganhar sentido. Memórias, sim, mas falsas, porque recusam tanto a veracidade biográfica como o abrigo da ficção literária. O memorialista é assim, no estrito e rigoroso sentido da palavra, um mentiroso: não cumpre a promessa de fidelidade ao que sabe ser ou julga ser a verdade. Mas também falso: o que pode ser um falso mentiroso? Aquele que diz a verdade sugerindo que mente? Mas se é possível mentir dizendo a verdade...! O falso culpado, por exemplo, não é apenas o inocente, e a diferença decorre do processo e da prova do tempo: é o inculpado, porque confundido com o verdadeiro culpado, que ao cabo se comprova inocente. Ora, o falso mentiroso pode deixar de ser mentiroso, sobretudo se mente de forma deliberada e exposta?
Note-se que o falso culpado só se torna falso quando a mesma instância que o disse culpado o declara inocente: alguma autoridade, portanto. Que aqui só pode ser a do próprio mentiroso. E é toda a diferença: o mentiroso promete memórias -e só ele as pode prometer- e logo as declara falsas -e só ele as pode declarar falsas. O desafio posto à leitura consiste em aceitar tanto a promessa como a declaração. Para que as memórias não deixem de ser memórias por serem falsas será preciso que o mentiroso se revele ao mesmo tempo falso e verdadeiro mentiroso, que diga falsas mentiras que são verdadeiras mentiras. Essa condição paradoxal, apenas a ficção literária a cumpre. Mas o decisivo reside em que, já o vimos, não se trata de estipular uma existência ficcional nem de falar da vida como se fosse ficção, mas de encarar a própria existência condenada à ficção. Aí chegamos à figura da semente.
Perto do final, o leitor aprenderá que os filhos de Samuel eram outra das mentiras: nunca os teve. Seria precipitado, porém, supor que a derradeira frase "Lego ao mundo as minhas telas. À história, uma família a menos" se refere apenas à falta de descendência. O efeito é esse e bem mais radical do que esse, porque retroage a partir dele: é a própria família -a própria idéia de família enquanto ascendência, enquanto laço, enquanto descendência- que se suprime página a página. E sempre em resposta à série de perguntas implícitas que estruturam o gênero das memórias: Quem sou eu? De onde venho? Qual o meu destino? Quem me sucede?
Série de matriz edipiana, não admira assim que o modelo da primeira mentira seja o freudiano "romance familiar": o meu pai não é o meu pai, a minha mãe não é minha mãe, fui achado, trocado algures, encontrado etc. Como não admira que a figura que domina todo o livro seja a do pai, dito falso pai e verdadeiro mentiroso: manteve um escritório de advogado como fachada para proteger o segredo do negócio que alimentava a família, o fabrico e comercialização de preservativos. O legado do pai é essa mentira e sobretudo a ironia dela: depois da fortuna acumulada em segredo, a decadência inexorável por efeito da invenção da penicilina, tudo antes do tempo em que o preservativo ressurgiria abertamente graças ao terror do HIV. Como se o legado material se tivesse esgotado antes do tempo que permitiria multiplicá-lo, para que ficasse apenas o legado simbólico da mentira e do encobrimento, da dissimulação como proteção, do segredo aliado à interrupção do caminho natural da semente: o "círculo da esterilidade".
A troca do nome próprio radicaliza o efeito mais devastador: a destruição do patronímico, a qual, por sua vez, mata as memórias. Memórias póstumas, não porque literalmente de morto, mas porque elaboradas após a perda de tudo o que as torna possíveis: o conhecimento seguro da origem, a raiz da identidade, a sucessão. A dispersão da família, da descendência e da ascendência, destrói consequentemente o princípio de autoridade das memórias: o sujeito persiste, mas apenas enquanto memória de si mesmo fixada no papel, sem outra garantia além da que é dada pelo fato de ser escrita.
Ou seja, sem outra garantia além da que se confunde com a que é própria da ficção. Como todas as memórias, dir-se-á, e na verdade não: aprende-se com este livro que o que distingue os livros de memória da ficção literária é a figura do guardião, o filho do pai, que recebe o legado do pai e fica investido da autoridade da família, vigiando a verdade, assegurando-a também, preservando a continuidade do laço familiar.
O falso pai e o falso filho não se tornam falsos guardiões: são antes a ausência radical do guardião. O "círculo da esterilidade", ao fechar-se, faz verdadeiras as memórias quando justamente as revela livres para a invenção, invenção total ou parcial, mas invenção em que nunca se distinguirá entre o que se encontrou ordenado e estabelecido e o que o texto das memórias por si só ordena e estabelece. Nesse sentido, as memórias protegem o memorialista. Enquanto mentira, afirmada, repetida, variada, protegem-no da dúvida, da interrogação, da perseguição da verdade -da obsessão pela verdade. Enquanto falsa mentira, protegem-no de ser contaminado e o impedem de contaminar outros com essa mesma obsessão. Porém deixam-no livre: livre do encargo de transmitir a alguma criatura o legado da nossa miséria.


Abel Barros Baptista é crítico português, professor de teoria literária e literatura brasileira na Universidade Nova de Lisboa e autor de, entre outros, "A Formação do Nome" e "Autobibliografias" (Ed. da Unicamp).

O Falso Mentiroso
222 págs., R$ 27,00 de Silviano Santiago. Ed. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 4º andar, CEP 20011-040, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2507-2000).



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