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+ tecnologia
Em "Pessoas Digitais", lançado há pouco nos EUA, o físico Sidney Perkowitz
faz um apanhado da evolução dos seres artificiais na arte e na ciência
O futuro biônico de todos nós
Virgílio Fernandes Almeida
especial para a Folha
O cenário é simples, porém desconcertante: a convivência futura
de seres humanos e seres artificiais. Num extremo do espectro
da variedade de seres estão os humanos,
tais e quais a natureza os criou. No outro
extremo, aparecem os andróides, seres inteiramente artificiais, mas criados à imagem e semelhança dos homens. No meio,
habitam algumas variações. Os seres biônicos -pessoas com partes sintéticas-,
os robôs e os ciborgues -seres de estrutura e construção artificial, mas com cérebros humanos. Estranho cenário? Talvez
até completamente irrealista para muitos.
Entretanto não é o que pensa o físico Sidney Perkowitz, como mostra o recente livro publicado pela Academia de Ciências
dos Estados Unidos: "Digital People -From
Bionic Humans to Androids" [Pessoas Digitais - de Humanos Biônicos a Andróides,
Joseph Henry Press, 238 págs., US$ 24,95].
Perkowitz não precisa ir longe para mostrar os sinais dessa variedade de seres no
mundo contemporâneo. Começa mostrando que 10% da população americana já
seriam biônicos, pois apresentam partes
sintéticas, que vão desde as próteses funcionais até os implantes artificiais e as modificações de natureza estética, que incorporam novos materiais e novos elementos
ao corpo humano. A história do relato das
próteses data de 2000 a.C., quando a rainha
hindu Vishpla substituiu uma perna perdida numa batalha por uma perna de ferro.
Embora de extrema significância, os implantes não poderiam se caracterizar como
avanços em direção à construção de ciborgues. Entretanto, recentemente, a tecnologia dos biônicos deu mais um salto, com o
início de conexões diretas de sistemas orgânicos e componentes artificiais em nível
do sistema neural. São os casos das técnicas de estímulo ao nervo vago para tratamento de epilepsia e mal de Parkinson e
dos chamados ouvidos digitais, para a cura
da surdez. Em ambas as técnicas, sinais gerados por dispositivos eletrônicos e microprocessadores, implantados no corpo humano, são transmitidos a componentes do
sistema cerebral.
Mas seriam os seres artificiais características exclusivas do século 21, marcado pelo
domínio da ciência e tecnologia? Perkowitz mostra que não.
No livro é abordada a evolução da idéia
de seres artificiais, desde os primeiros relatos que aparecem na Antigüidade. A história dos seres artificiais é contada tanto do
ponto de vista da ficção, por meio dos personagens da literatura e do cinema, quanto
da realidade, por meio das tentativas de
construir seres mecânicos e eletrônicos
com características e funcionalidades dos
humanos. Tentativas essas que sempre
buscaram ampliar ou restaurar a capacidade dos homens e prolongar a vida.
Os relatos iniciais de seres artificiais remontam à mitologia grega, com a história
de Talos, um gigante de bronze com sangue dos deuses nas veias criado por Hefestos. Entretanto é apenas a partir do século
19 que se revelam histórias particularmente marcantes na construção das imagens
icônicas dos seres artificiais que povoam o
imaginário coletivo. Começa com "Frankenstein", publicada originalmente em
1818, passa por Czech Karel Capek, que
cria o termo "robot" em 1921 com a peça
"RUR (Rossum's Universal Robots)", chegando a Isaac Asimov, que em 1950 publica
seu livro "I, Robot", em que são propostas
as leis básicas que regeriam o comportamento dos robôs.
O livro aponta então para o cinema, que
a partir dos anos 60 introduz robôs, ciborgues e andróides em filmes como "2001
-Uma Odisséia no Espaço", "Blade Runner", "O Exterminador do Futuro" e "Robocop" -filmes que influenciaram no delineamento da imagem coletiva e da funcionalidade que se atribui às máquinas inteligentes e outros seres artificiais.
"Pessoas Digitais" é uma síntese organizada e clara do tema robótica e biônicos. A
segunda parte do livro cobre os aspectos
relacionados aos robôs que visam a atingir
diferentes níveis da capacidade humana.
Os capítulos estruturam-se em torno de temas como o movimento e a expressão dos
membros do corpo humano, os cincos
sentidos básicos do homem e a capacidade
relativa ao pensamento, emoção e consciência. O equivalente ao cérebro humano
nos seres artificiais é apresentado como
um conjunto de microprocessadores e
softwares. O livro não toca, no entanto, em
algumas questões-chave para a produção
de seres artificiais, como o software, peça
fundamental desses sistemas. Será que os
sistemas de software são confiáveis o suficiente para que os robôs e outros seres artificiais façam apenas aquilo para o que foram projetados? A experiência com os
complexos sistemas de software hoje existentes não nos permite ter certeza das respostas a essa questão.
Em linhas gerais o livro trata de tecnologias, existentes e em desenvolvimento, para a construção das diversas variações de
seres artificiais. O autor motiva o leitor ao
apresentar a história da ficção dos seres artificiais e o distanciamento da ficção das
tecnologias necessárias ao desenvolvimento desses seres. Perkowitz, contudo, poderia ter explorado mais a literatura na busca
das questões que circundam os seres artificiais, em vez de se concentrar apenas nos
personagens diretos da ficção científica ou
do cinema. Poderia ter explorado a literatura de Borges, Calvino e outros na busca
de significações para esse mundo novo,
que vaga à vontade entre o real e o imaginário. O fantástico universo da literatura
de Borges serve à invenção de modelos
apropriados para o entendimento da complexidade do real e do virtual.
Borges, por exemplo, criou o personagem Funes, de memória praticamente ilimitada, como poderiam ter os seres artificiais. Nada, nenhum minucioso detalhe,
escapava da implacável memória de Funes.
E, apesar da ilimitada capacidade de memória, Funes era incapaz de "idéias gerais", era incapaz de pensar. "Suspeito entretanto que (Funes) não era muito capaz
de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é
generalizar, abstrair." No livro "Sete Contos de Fúria", do autor português contemporâneo António Vieira, um personagem,
ao se debater com dúvidas sobre sua origem, reflete e diz: "Na verdade, nem sei o
que é ser-se humano, nem não humano,
nem sequer quase humano". Isso o livro
não aborda. Passa ao largo dessas questões.
Virgílio Fernandes Almeida é professor e chefe do
departamento de ciência da computação da Universidade Federal de Minas Gerais.
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