|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A ESCRITA DO AFETO E DO MEDO
PESQUISADORA DO UNIVERSO DOS BLOGUES DISCUTE AS NOVAS
FORMAS DE SOCIABILIDADE CRIADAS PELO AMBIENTE VIRTUAL
Juliana Monachesi
free-lance para a Folha
Há quem diga que blogues, chats e fóruns foram a
infância da internet e que comunidades digitais
como o Orkut seriam os primeiros indícios de
sua maturidade. Se a nova sociabilidade que a
rede está propiciando se desenvolve a passos largos, a produção acadêmica não acompanha seu ritmo, e raros são
os estudos que refletem sobre ela. Denise Ferreira de
Araújo Schittine, autora de "Blog - Comunicação e Escrita
Íntima na Internet", a ser lançado em breve pela editora
Record, analisou o fenômeno dos diários pessoais disponibilizados em rede e empreendeu uma pesquisa de campo para saber quem são, para quem escrevem e que tipo
de laços estabelecem os "blogueiros" -assunto sobre o
qual discorreu em entrevista ao Mais!, por e-mail.
A sra. compara o fenômeno dos blogues (cujo surgimento
no Brasil localiza especificamente no ano 2000) com o da
disseminação das "webcams" com fins voyeuristas e dos
"reality shows". Seriam esses sintomas do fim da esfera íntima construída com a ascensão da classe burguesa e consolidada com o individualismo, cuja expressão mais acabada
se encontra no romance do século 19?
Não acredito que esses sejam exatamente sintomas do
fim da esfera íntima. Acho que a burguesia levou muito
tempo para construir essa esfera e provavelmente não
abriria mão dela tão facilmente. Foi um individualismo
construído com excesso de zelo. E o computador (como aparelho-prolongamento do corpo humano) veio
um pouco para reforçar esse individualismo. É um
aparelho feito para exacerbar a concentração de quem
escreve, nos limites físicos de seu corpo e dos dedos sob
o teclado. Ao mesmo tempo, a atenção desse indivíduo
se volta para o espaço que está sendo criado naquele
quadradinho que é a tela. Enquanto faz isso, o usuário
se distancia do ambiente e das relações que estão à sua
volta para se desdobrar num outro mundo, num segundo mundo que está sendo construído ali no ambiente virtual.
Isso reforça o individualismo? Provavelmente. Quando estamos no computador, abrimos mão do "mundo
real" para nos fecharmos no nosso "mundinho". Por
outro lado, os outros apontamentos da invasão da esfera íntima ("webcams", "reality shows" e, junto, os blogues) só funcionam na medida em que reforçam ou sacralizam essa esfera. Ou seja, é possível entrar num blogue, mas nunca conhecer o autor pessoalmente; observar alguém através de "webcams", mas nunca estabelecer diálogo; é possível torcer pelo personagem do "reality show", mas nunca conhecer realmente a pessoa
que está por trás daquele personagem.
As possibilidades de desvendamento do outro só são
permitidas com o consentimento desse outro. Por isso,
a esfera íntima permanece de certa maneira intocada
-porque, no caso do blogue, existe uma bruma, um
véu ainda intransponível representado pela superfície
opaca da tela.
Que transformações o advento do computador pessoal e da
internet opera em gêneros literários como diários, memórias e escritos afins?
O computador pessoal e a internet -cada um a seu
tempo e de formas diferentes- operam mudanças
não só nas "escritas do eu" (como Paul de Man escolheu chamar a biografia, o diário, a memória) como em
outros tipos de escrita. A primeira e fundamental mudança da escrita pelo computador é o tempo de criação
e reflexão do texto. Então, vemos na atualidade escritores que dependem fundamentalmente do barulhinho
da tela se "abrindo" e das torres perscrutando arquivos
anteriores para começar a escrever. Para esse mesmo
escritor, o branco da tela do Word é muito menos aterrador para começar a escrever do que a folha de um caderno. Há outros escritores (ou diaristas, como preferir
chamar) para quem o processo criativo não acontece
sem o volume e o peso das folhas de papel nas mãos,
sem as possibilidades de rasura, sem o instante exato
em que buscam a "mot juste" para uma frase com o lápis na boca.
Então, estruturalmente, o texto de escrita livre (como
é o texto do blogue) muda fisicamente: a ortografia é
substituída pela tipografia, a rasura pelo texto limpo, as
folhas repletas de bricolagem pelas páginas lançadas
no espaço virtual do computador. O texto que vai para a
internet, então, caracteriza a escrita fluida, transitória,
sujeita a mudanças.
Por outro lado, o blogue supõe e espera uma escrita
direta, informativa, um texto curto, menos elíptico. É
possível que essas características e mais inúmeras possibilidades de reescritura e mudança do texto dêem a
essa nova escrita íntima (pensada no espaço virtual)
mais qualidade de estilo. Mas essa qualidade se ganha
em detrimento de duas características ainda fundamentais do escrito íntimo: a memória e a personalização. Como nada que caracteriza o cerne do escrito íntimo está sendo perdido, cabe aos novos diaristas (os virtuais) descobrirem maneiras de desenvolver a memória
e a personalidade em seus escritos.
A partir do momento em que a existência de um diário íntimo na internet deixa de constituir um paradoxo, também
cai o mito da ausência do leitor. O blogue supõe um público
e uma relação com ele. Como fica o estatuto da confiança e
da cumplicidade nesse novo tipo de relação?
Muitas das características do escrito íntimo não se perderam com a passagem para a internet, apenas se modificaram. O barato é exatamente estudar o caráter de
adaptação dessas estruturas seculares da amizade, da
cumplicidade, do contrato de cavalheiros ao ambiente
virtual. O desejo de ser lido está mais forte do que nunca. Um dos méritos dessa nova escrita íntima é tentar
apontar mais uma resposta para a impossível equação
ocidental "eu x outro". No blogue essa equação aparece
mais uma vez: quem escreve deseja saber a opinião desse outro, procura se identificar com ele. A tensão continua porque na internet se relacionar com o outro não
significa conhecê-lo exatamente como é, mas conhecê-lo de forma desigual: profundamente em algumas
áreas, superficialmente em outras. E nunca ter certeza
de que aquele que escreve é o mesmo ente que está por
trás da tela.
Então é preciso redimensionar as relações, porque
elas acontecem com alguém que conhecemos "por escrito", não pessoalmente. É bom porque caiu por terra a
tensão inicial imposta pela relação face a face, mas entra
uma outra tensão, talvez muito mais forte: a de estabelecer confiança. Como estabelecer confiança com alguém que não conhecemos? Então surgem algumas saídas bastante originais e outras que são apenas releituras
de tudo o que já foi feito. O contrato de cumplicidade e
o acordo de cavalheiros são formas antigas de estabelecer confiança, formas que remontam às confrarias, aos
clubes, às maçonarias. Não é sensacional que reapareçam no século 21? E que reapareçam porque são, ainda,
as formas burguesas de estabelecer confiança? A cumplicidade com o outro, aquele que não conhecemos,
que está separado por léguas de distância pela superfície opaca da tela, é feita por um fino e delicado fio: o da
identificação. Se podemos ver no outro um pouco de
nós mesmos, pronto! Lá está um igual ou parecido (um
espelho), lá está alguém em que podemos confiar.
Quais as perdas e ganhos, tanto para os autores dos blogues quanto para seus leitores, do compartilhamento da
intimidade na internet?
É um jogo. Para quem escreve o diário é na internet
que está a possibilidade de mostrar o texto, e não a
cara. E, a partir daí, recolher as impressões e opiniões do público-leitor. Pode ser interessante escrever um texto menos alienante, um texto construído
também com as impressões do outro. Mas pode
também ser inteiramente desestimulante a opinião
contrária de um leitor, que pode causar medo ou
bloqueio. O leitor é uma madrasta em muitos casos
pior do que um editor de jornal. Mas é assim que é,
quem escreve diretamente para o público, sem nenhuma mediação limitadora de idéias ou conteúdo,
precisa estar preparado para as críticas também.
Ambos -o leitor e o autor- podem também ser
reféns da artificialização das relações que acontecem apenas textualmente. Essas relações se criam
com uma certa expectativa e afastamento que depois é difícil de ser superado. E, aí, como passar das
relações "literárias" para as relações face a face?
Não existe contradição quando, em um momento, a sra.
fala no computador como um instrumento de isolamento e de "sociabilidade segura", por meio do qual é possível "formar uma rede de amigos virtuais que compensa
o déficit de relações reais", e, mais adiante, defende que
o blogue é um catalisador de comunidades, uma possibilidade de interação social criativa?
Acho que as duas informações não se subtraem, elas
se complementam. É claro que o computador isola,
em alguns casos, aquele que escreve do ambiente à
sua volta. Mas aquele mesmo usuário que se perde
concentrado num ambiente virtual está criando ali,
naquele ambiente virtual, uma nova rede de amizades e relações. São amizades e relações feitas por
meio do computador, com a distância invisível do
tempo e do espaço, mas com pessoas que são reais.
Não se pode tirar o mérito disso. Se essas relações
são saudáveis ou não, ainda é uma questão.
Mas a resposta dos meus entrevistados no trabalho de campo sobre a questão da mentira, da construção de um caráter diferente ou de um personagem para circular na internet foram todas muito parecidas: não vale a pena mentir. Por trás de uma personagem criada pelo autor, existe o próprio autor. E,
se existe no leitor um interesse genuíno por essa personagem, automaticamente o autor se vê obrigado a
dizer mais verdades sobre si mesmo. O contrato de
cumplicidade entre leitor-autor passa muito por essa questão.
A internet é um microcosmo. Uma sociedade que
reproduz ou superproduz exatamente essa em que
vivemos. Então, as relações, os desgastes, as aproximações e os afastamentos acontecem, sempre, mas
num ambiente agora virtual. Criam-se novas formas de sociabilização construídas em cima da identificação pelos pequenos hábitos, esses biografemas
virtuais.
Texto Anterior: Jogo propõe namoro interativo Próximo Texto: Economia das trocas simbólicas Índice
|