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O mundo árabe no espelho do Ocidente
Alain Touraine
Nenhum país pode escapar aos
efeitos das transformações planetárias que acabam de ocorrer. Podemos defini-las com uma palavra: hoje é uma lógica de guerra que domina o mundo; ela substitui a da globalização, isto é, a da hegemonia econômica
dos Estados Unidos, de seus aliados e
seus instrumentos, sobre o conjunto do
mundo. Os atentados de 11 de setembro,
causa ou consequência, provocaram
uma onda de choque cuja potência o
mundo começa a compreender. Economicamente, a dominação americana não
estava ameaçada. O Japão dez anos atrás
estava asfixiado pela crise bancária; a Europa se retardava na criação de novas
tecnologias e novos conhecimentos e
não tinha armas para impor uma política. A China estava há muito ocupada
com sua mudança, a passagem de centenas de milhões de homens de uma economia tradicional para uma economia
de mercado. A aproximação com a Rússia, a oitava maior economia, afastava
qualquer chantagem nuclear, e os ricos
participantes do Fórum de Davos não se
sentiam ameaçados por aqueles de Porto
Alegre, embora este tenha recebido
grande atenção da mídia. E tudo permitia pensar que a passagem de Clinton para Bush não teria grandes repercussões,
sobretudo porque o novo presidente parecia uma personalidade fraca comparado a Clinton, mais internacional e mais querido.
O pessimismo da razão
Esse panorama geoeconômico desmoronou em algumas semanas ou mesmo em alguns
minutos. Hoje, 11 meses depois da destruição das torres de Nova York, a mudança de período histórico é visível por toda a parte. Um olhar inteligente sobre
o mundo só vê, num planeta em grande parte na obscuridade, o confronto do gigante econômico e militar americano com pequenos grupos em crescimento
mas ainda fracos, grupos que têm como
característica muito nova o fato de seus
membros possuírem uma experiência
pessoal do mundo ocidental.
É o caso de Bin Laden, o dos camicases
palestinos treinados por Sharon no círculo da morte, sem uma saída política visível do confronto entre o Estado de Israel e um Estado palestino reclamado
por todo um povo.
Os atos que perturbam a opinião mundial são certamente atos terroristas, mas
não podemos reduzir a terrorismo atos
inspirados por condições políticas ou religiosas tão fortes. Basta lembrar os muito jovens bassidjis iranianos indo para a
morte voluntária na guerra contra o Iraque. Trata-se hoje de uma guerra de religiões? Deve-se falar em Jihad e em cruzada? Podemos compreender os que pensam assim, tanto de uma forma elaborada, como a de Samuel Huntington,
quanto da maneira brutal escolhida por
Oriana Fallaci. Na verdade, essa interpretação esteve próxima da verdade durante o período em que se construíram
os regimes islâmicos, no Irã e no Sudão
por exemplo, ou ainda na Argélia, se as
eleições que deram a maioria ao GIA
(Grupo Islâmico Armado) não tivessem
sido anuladas pelos militares. E hoje uma
outra hipótese parece mais satisfatória.
O mundo muçulmano há dois séculos
é atraído para o mundo ocidental em
pleno progresso. Começando pelo Egito.
A grande revolução ocidentalista realizada por Ataturk levou a Turquia a romper
com o mundo islâmico, e o Baas, tanto
na Síria quanto no Iraque, foi um movimento não-religioso e que só recentemente utilizou a religião de maneira totalmente instrumental. O fracasso tão
frequente das tentativas de ocidentalização veio pelo lado dos colonizadores,
principalmente ingleses e franceses, mas
sua principal causa se encontra na resistência de uma sociedade islâmica na qual
o Corão, os comentários que dele se fizeram, a lei islâmica, a charia, os poderes políticos e as culturas formam um bloco,
enquanto a separação dos diversos campos econômico, político, cultural etc. foi
a chave da modernização européia.
Daí o lugar central dos movimentos islâmicos, a grande aliança das novas burguesias e das massas populares desenraizadas, a chegada ao poder de um islamismo duro no Irã e no Sudão em particular, sem esquecer a estranha Arábia Saudita, tão ligada pelo petróleo aos Estados
Unidos e que financia todos os inimigos
do "Grande Satã". A situação que vivemos dá sequência ao retorno dessas políticas islâmicas, devido em parte à absorção pelo capitalismo mundial das novas burguesias dos países islâmicos. Hoje assistimos a um ataque desesperado contra o Ocidente, conduzido por homens,
partidos e categorias que foram muito
ocidentalizados e que se voltam contra
um Ocidente do qual se sentem rejeitados, mas sobretudo onde sua sociedade
não está pronta para entrar. E isso já era
verdade para uma parte dos islâmicos
argelinos; o era de maneira mais visível
para a Al Qaeda, cujo chefe, Bin Laden, é
um dos que dirigiram os atentados -e
todos esses eram fortemente ocidentalizados.
Na verdade não se trata aqui do mundo
islâmico. A Turquia conteve a ascensão
do partido Refah; o Irã, apesar da resistência dos religiosos, não poderá impor
por muito tempo uma república islâmica
a uma população que exige maciçamente as liberdades de que é privada. O mundo árabe, por ser mais próximo do mundo ocidental, sente de maneira mais forte
seus fracassos. Mas as violências atuais
no mundo árabe não explicam totalmente a brusca mudança dos Estados Unidos, que hoje dão prioridade a uma política militar. A explicação vem, antes de
tudo, da questão do petróleo e sobretudo
do futuro muito comprometido da Arábia Saudita. Se esta derrubar sua monarquia, se outros países realmente apoiarem uma revolução saudita, o abastecimento de petróleo do Ocidente estará gravemente ameaçado.
Situação explosiva
Da mesma maneira, a existência de Israel também estaria diretamente ameaçada. De ambos os lados as apostas são extremas, o que explica que os militantes de diversos países árabes e da Palestina em primeiro lugar
aparecem nos Estados Unidos como a
vanguarda de um ataque poderoso, e
que é preciso atraí-lo antes que ocorra
uma explosão na Arábia Saudita ou na
Palestina. A situação é ainda mais perigosa hoje do que no momento da guerra
contra o Iraque. Todos os países do
mundo que não estão situados na linha
de frente vão sentir fortemente essa mudança da conjuntura mundial.
Em toda parte a antiga prioridade dos
problemas econômicos desaparece em
benefício de problemas nacionais. O
mais importante para os países é serem
capazes de agir como uma nação, o que
implica condições sociais, assim como
propriamente políticas. Esse é o pano de
fundo sobre o qual vai se realizar a eleição presidencial no Brasil.
Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de
Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de, entre outros, "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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