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DENTRO DA REDE FORA DA LEI
MAIS MULTIÉTNICO E LITERÁRIO, RAP PRODUZIDO POR GRUPOS COMO NIQUE TA MÈRE E ASSASSIN RENOVOU A LINGUAGEM POÉTICA FRANCESA
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Alcino Leite Neto
de Paris
O avanço da extrema direita, a situação dos imigrantes e a delicada questão da segurança pública na França esquentaram ultimamente os debates políticos institucionais e a mídia. Há
muito tempo, no entanto, eles são temas do rap francês,
hoje uma das expressões artísticas mais sensíveis aos
dramas cotidianos do país e às condições de vida de
grupos sociais marginalizados.
O rap francês, porém, não surgiu nas ruas, como nos
Estados Unidos. Foi difundido, no início dos anos 80,
em programas de televisão e numerosas emissões de rádio, que incentivaram a sua popularização. O gênero
musical encontrou um terreno propício nos subúrbios
onde viviam os imigrantes e os pobres.
Em pouco tempo, o rap e a cultura hip-hop se irradiaram pelo país inteiro. No início dos anos 90, a primeira
geração de rappers se projetou: MC Solaar, NTM (Nique Ta Mère), Assassin. A cada ano surgiam novos grupos. No final da década, a França já se tornara a segunda
nação do rap, depois dos EUA, com características muito diversas dos norte-americanos. A começar pela multietnicidade dos grupos. Enquanto nos EUA os grupos
mistos de rap são raros, na França eles são muito comuns, reunindo descendentes de africanos, árabes e europeus, entre outras descendências. A inclinação literária dos franceses também é acentuada e chega a ter mais
importância que a função política, como ressalta o musicólogo e professor de filosofia Christian Bethune, 53.
Ele é autor de "Le Rap - Une Esthétique Hors la Loi"
("O Rap - Uma Estética Fora da Lei", ed. Autrement),
um ótimo estudo histórico e estético sobre o gênero
musical, em que citações de Rousseau, Benjamin e Bastide se misturam a outras, de Public Enemy, Notorious
Big e Ice T. Seu próximo livro fará uma comparação entre os "grandes retóricos" ("grand rhetoriqueurs"),
poetas do século 16, e as construções estilísticas do rap
francês, que está agora na terceira geração, com nomes
como Kery James, Rohff e Intouchable.
"Os rappers na França foram marcados por sua passagem pela escola e pela literatura. É o que se percebe
em vários deles, que fazem alusões literárias, verdadeiras citações, a autores como Baudelaire e Rostand", diz o musicólogo na entrevista a seguir.
Nos anos 90, a França se transformou na segunda principal nação do rap. Quais são os motivos para isso ter ocorrido neste país, e não na Inglaterra, por exemplo?
Primeiro, devido à forte implantação dos imigrantes
no país. Também por causa da relação privilegiada
entre a música afro-americana e a França. Muitos
músicos de jazz fizeram carreira e chegaram mesmo
a se instalar aqui. Na Inglaterra, por sua vez, sempre
houve uma certa rivalidade com a música americana. Para um inglês, fazer rap é se assemelhar mais
ainda com a língua americana. Na França, ao contrário, logo surgiu o desejo de transpor o rap para o francês.
Os negros na França não têm, obviamente, o passado da
escravidão. A partir de que tradição se desenvolve o rap
aqui?
A partir da tradição oral das culturas dos imigrantes,
sobretudo. Embora eu não considere que o rap seja
uma forma de música apenas oral. Ela é ao mesmo
tempo totalmente escrita e totalmente oral. É do vaivém entre escrita e vocalização que o rap tira grande parte de sua condição artística.
A função escrita tem mais importância na França? O sr.
escreve que o rap daqui é mais literário que o dos EUA.
Penso que aqui ele é muito influenciado pela escola.
O sistema escolar francês, ainda que o critiquemos
muito, não é igual ao americano. E os rappers foram
marcados por sua passagem pela escola e pela literatura. É o que se percebe em numerosos rappers que fazem alusões literárias, com verdadeiras citações a autores como Baudelaire e Rostand. A forma
como trabalham a prosódia também demonstra que
se baseiam no aprendizado escolar.
É exagerado dizer que o rap renovou a linguagem poética na França?
Não é. Estou trabalhando atualmente numa aproximação entre o rap e os chamados "grandes retóricos" do século 16, que trabalhavam bastante sobre os
efeitos prosódicos, como começar um verso com a
rima do último verso ou rimar no interior do verso
etc. Todas essas estratégias, que Malherbe (1555-1628), em prol do classicismo, iria considerar gratuitas, mas eram verdadeiros jogos com a linguagem,
reaparecem de certo modo no rap. Essa música também foi um maravilhoso desembocadouro literário para a linguagem das cidades.
O sr. escreve que, para o rap americano, o islã tem uma
função política. O que ocorre na França, onde se estima
que existam 5 milhões de muçulmanos?
Penso que aqui tem um papel secundário, de superfície, para produzir um certo efeito contestador. Para muitos jovens, o islã é percebido como uma religião
rebelde e também uma grande cultura que pode se
opor à dominação cultural dos EUA. Trata-se, no entanto, de uma posição totalmente paradoxal, pois, como se sabe, um islã duro, integrista, chega até a excluir a música da sociedade. Tenho dúvidas inclusive se mesmo um islã mais tolerante aceitaria o rap. A função política do rap, porém, não é muito grande
na França.
Como os rappers se comportam em relação ao crescimento da extrema direita na França?
Nesse caso, eles com frequência apagam os seus antagonismos e se mobilizam em ações de protesto. A oposição à extrema direita é um ponto de acordo político entre eles, que em geral têm muitas rivalidades regionais. Os rappers marselheses, por exemplo, se opõem aos da região parisiense. São rivalidades tribais. É raro o rapper de um setor apreciar o de outro. Todos alimentam também uma atitude de grande suspeita contra aqueles rappers que são bem-sucedidos no mercado da música.
O movimento hip-hop na França é mais multiétnico que nos EUA?
Sim. Nos Estados Unidos, cada coletividade humana (étnica, linguística, religiosa e mesmo sexual) tende a se organizar no seio de comunidades territorialmente isoladas e sociologicamente fechadas. Na França,
esse gênero de particularismo é contestado, e a integração é tentada no plano individual. Com isso, enquanto o rap americano segue a lógica do gueto, o
francês obedece à da rede, que se alimenta de gente vinda de todos os horizontes. É a língua francesa que em primeiro lugar vai se constituir como o fundamento dessa rede e o elemento de unidade.
O sr. diz que o rap é contemporâneo, nos EUA, dos primeiros "golpes sombrios" da administração Reagan. Na França ele é contemporâneo de que fatores políticos?
Sobretudo das rupturas sociais nas cidades e da marginalização de toda uma parte da população nos subúrbios. A condição social do rap já estava em obra
há muito tempo na França, quando ele se implantou.
O rap, hoje, ainda é uma "estética fora da lei"?
Acho que sim. Quando denominei o livro dessa forma, pensava realmente mais no estético do que no jurídico. Creio que os rappers têm uma maneira de
conceber a arte que é largamente incompatível com o modo como o conceito de arte se constituiu no Ocidente. Eles mostram que há outra maneira de pensar a arte e praticá-la. Nesse sentido, continua a ser fora da lei.
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