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Ponto de Fuga
Metafísica dos delitos
Jorge Coli
especial para a Folha
Tom Cruise, com os gestos de um maestro diante da
orquestra, faz nascer e desvanecer imagens. Elas surgem num suporte transparente, mas é como se pairassem no ar. A atmosfera, em "Minority Report", é azulada, embaçada, translúcida como a de um aquário. Spielberg já se fascinara pelas águas em "A.I. - Inteligência
Artificial". Agora o filme todo parece submerso. Os
mergulhos pontuam a trama. São águas protetoras, uterinas: o coração da história é um tanque que contém líquido amniótico, cujo apelido é "o Templo".
Lagos podem agitar-se sob o vento, violentados por
um crime, mas a parábola vai se terminar por sobrevôo
de ilhas tranquilas, que mal rompem a superfície aquática. Esse final é quase um alívio, não fosse a angústia
dolorida que tudo impregna: um crítico italiano, Giuseppe Genna, percebeu a "ânsia metafísica e a física "ansiogênica'" que circula sem cessar no filme, uma respondendo à outra, sem soluções definitivas. Imaginação, memória, premonição, mundo visível são sempre
imagens, mais ou menos precisas.
O olho pode ser intercambiável ou conter os sinais de
uma identidade fixa: na visão -ou antes, em todos os
modos das visões- se encontra o entendimento, com
alcance inesperado, mas também com fronteiras impossíveis de serem transpostas. O determinismo, o livre-arbítrio, a natureza do tempo, os limites do conhecimento formam o campo de interrogação de "Minority Report", espantoso filme filosófico. Ele flui por meio de uma narração enérgica, sem falhas, e pela caracterização persuasiva, muito sutil, do futuro.
Fim - O que tiveram em comum Marilyn Monroe,
Adolph Hitler, Gilles Deleuze e Santos Dumont? Todos
eles se suicidaram. Estão, entre muitos, no "Dicionário
dos Suicidas Ilustres" (ed. Record), escrito por J. Toledo. O livro foi publicado há dois anos. Porém, cada vez
que é retomado, as descobertas parecem brotar, novas.
O leitor não cessa de se espantar: mas fulano se matou?
E beltrana também?
Talvez a maior força do livro, além da pesquisa minuciosa, esteja em sua frieza objetiva. Não há hierarquias:
o dicionário ordena-se rigoroso e, como deve ser, pelo
alfabeto. Não dramatiza, não complica, não teoriza. Resume as biografias, assinala perturbações, descreve os
gestos finais com secura, assim: "Foi encontrada morta
em 22 de junho de 1969, trancada no banheiro de seu
apartamento londrino, onde estava sentada na latrina.
Suicidou-se com uma overdose de pílulas para dormir e
enorme quantidade de vodca" -Judy Garland. Ou ainda: "Afinal, matou-se na fazenda de Ketchum, Idaho,
dando um tiro de espingarda de dois canos na boca, puxando o gatilho com os pés" -Ernest Hemingway.
Seria possível mesmo, a partir do livro, estabelecer
gráficos, verificando se há tipos de suicídio mais comuns em diversas épocas, profissões, idades. A indiferença objetiva põe o leitor contra a parede, obrigando-o a uma reflexão inquieta.
Tango - "Voltar a Palermo" é um romance de Luzilá Gonçalves Ferreira (ed. Rocco) que, desde o início, impõe a verdade fluente, detalhada, do estilo e da narração. Palermo é um bairro de Buenos Aires; o retorno surge por memória intensa que se quer de novo realidade, que tenta refazer sentimentos interrompidos há 20 anos. Mais para o fim, a busca cessa. Os personagens,
então, se precisam e se multiplicam, para se desfazerem em sombras quase oníricas.
Venda - O olho tem um lugar essencial em "Minority Report". Nem sempre basta, no entanto. Spielberg virou diabo para uma parte da crítica, que quer esconjurá-lo. Ele seria a encarnação mais explícita do Mal, ou
seja, de Hollywood, fábrica infame de produtos comerciais indignos do prazer e do pensamento. Não importa que "Minority Report" seja poderoso e complexo, não
importa que, ao longo de seus filmes, Spielberg revele a coerência de uma obra, em constantes que retornam, sob novos enfoques ou novas nuanças. A negação teimosa demonstra, com evidência, que, de fato, a pior cegueira não está no olho.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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