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+ cinema
O diretor explica "Kedma", que está competindo em Cannes, e afirma querer
desmontar a "novela" em que a mídia transformou o conflito árabe-israelense
Um olhar subversivo sobre o Oriente Médio
Sheila Schvarzman
especial para a Folha
O cineasta Amos Gitai, como outros israelenses,
não se rendeu ao clima guerreiro que contamina políticos e populações. "Kedma" [em direção às origens, em hebraico], que está competição no Festival de Cannes e trata da Guerra de Independência de Israel em 1948 é, infelizmente, premonitório. Estão ali esboçados os conflitos a que hoje se assiste.
Em "Kedma", Gitai reúne sobreviventes do Holocausto
que chegam a Israel e são enviados para o campo de batalha onde muitos deles morrem sem que se saiba nem
mesmo o seu nome, palestinos que partem para o exílio,
soldados ingleses que têm a pretensão de tudo controlar
e combatentes judeus. Interessado em descobrir como
o antigo povo errante se converteu num povo de soldados que perdeu a capacidade de controlar o uso da força, Gitai vai ao fundo das questões que dividem israelenses e palestinos, revolvendo a própria história sem
complacência.
Sua obra tem se caracterizado pelo
olhar crítico sobre Israel. Em "Kedma", se
a situação em foco é a Guerra de Independência de 1948, sua questão profunda é
analisar como os sobreviventes do Holocausto vão se adaptar a essa nova terra,
confrontando também outro desterro, o
dos palestinos provocado por Israel.
Eu queria falar desses sobreviventes
que chegam à Palestina depois da Segunda Guerra Mundial. Eles começaram a viver numa nova terra ainda marcados pelo horror de sua
antiga experiência e se defrontam lá também com
um novo conflito. Como se deu a transição entre os
dois êxodos? O que imaginavam antes de chegar? A
paisagem que encontram pertence ao imaginário de
toda a humanidade. Ela não é espetacular, ao contrário, é suave, feita de traços sutis como num quadro
de Courbet com suas cores doces, o sol quente da
tarde.
Em "Kedma", os homens observam a paisagem, mas
pode-se imaginar o contrário: a paisagem, testemunha calada de séculos de história, observa a passagem dos homens, suas guerras, sua loucura, as incontáveis perdas. Alguns meses depois de começar a
escrever sobre essa história, a realidade do Oriente
Médio alcançou o projeto. O conflito que nos dilacera hoje começa em 1948.
Como surgiu a idéia de filmar "Kedma"?
Quando eu tinha 5 ou 6 anos, havia em casa um pequeno entalhe feito com muita sensibilidade. Minha mãe me contou que havia sido feito por um homem
que chegara de barco da Europa em 1948, partiu para
o combate na Guerra de Independência e nunca
mais voltou. Isso me marcou muito.
Como alguém com tanto talento deixa apenas uma
pequena marca e desaparece?
Depois havia a história do pai de minha mulher, o
único de sua família que conseguiu fugir da Polônia
com a chegada dos nazistas. Ele se engajou no Exército Vermelho, foi enviado à fronteira russo-japonesa e, no fim da guerra, atravessou toda a União Soviética em sentido contrário e pegou um barco para
a Palestina. Assim que desembarcou, foi enviado de
novo ao campo de batalha para abrir a estrada entre
Tel Aviv e Jerusalém -que em 1948 estava sitiada
pelos árabes- e acabou ferido. É esse o tema de
"Kedma", um filme sobre os "deslocados" de 1948:
os sobreviventes da Europa deslocados em Israel, e
os palestinos deslocados pelos israelenses.
Ao compor esse quadro da fundação de um Estado que
surge a partir de vários êxodos, você utilizou atores de
origens distintas, compondo um exemplo possível de vida em comum de povos que hoje têm preferido o combate ao diálogo.
O cinema ajudou muito nesse período terrível e triste. No set de filmagem
havia judeus, árabes, gente de países
diferentes que estabeleceram relações
de amizade verdadeira, de diálogo e
de criação comum. Isso foi como um
milagre em meio ao caos da matança
mútua e do sentimento geral de que
não há saída possível, de que a única
solução é a força.
O cinema nos salvou um pouco, ele
nos deu a opção de dirigir a energia de um grupo de
pessoas dilaceradas rumo a um projeto criativo. No
fim das filmagens estavam todos muito tristes em
voltar para casa e mergulhar novamente diante da
tela da televisão.
Qual é a ficção que palestinos e israelenses têm vivido e
que a mídia tem reforçado?
De ambos os lados, hoje se acredita que a força vai levar a uma solução definitiva. Na TV isso está compondo uma espécie de novela que se acompanha cotidianamente: um dia, depois de um atentado suicida, os palestinos são terríveis, depois são os israelenses. No outro dia os israelenses são bons, no dia seguinte são maus. Os mortos são uma espécie de
moeda de troca. Essa mecânica binária, difundida
pela TV, incita os diferentes poderes a buscar efeitos
dramáticos. Se eu faço filmes é para mostrar uma
outra visão sobre o que é mostrado pela mídia. O cinema tem que ser subversivo diante dessa loucura.
Ele tem que recusar essa divisão.
Passados mais de 50 anos da existência de Israel, perderam-se os antigos valores éticos e a capacidade crítica?
A grande dificuldade hoje é dominar a força. Todo
povo que detém sua própria história, seu destino,
não pode se deixar levar pela força. Nos anos da diáspora, essas questões não eram centrais para os judeus. Hoje é preciso aceitar que fazem coisas morais
e imorais.
Em meu filme, procurei em 1948 as raízes do projeto
que fez dos israelenses guerreiros. Na origem da nova sociedade concebida pelos sionistas, os judeus
não deveriam ser apenas comerciantes ou intelectuais, como na diáspora, mas também agricultores e
soldados. A crise de identidade de Israel vem daí. O
projeto se realizou em sua lógica extrema. Eles começaram na terra e se tornaram soldados. E agora, o que esperar?
O que você espera?
São necessárias várias coisas ao mesmo tempo. Aceitar que o conflito é legítimo, que as opiniões podem
variar e que não é necessário passar pela matança
para entrar em acordo. Há várias formas de diálogo,
mesmo na discordância. Não existe fórmula perfeita
em política. Quem busca a perfeição em política termina como Pol Pot no Camboja, matando todos que
se opunham ao seu modelo.
Na arte, ao contrário, é possível buscar a perfeição,
ser radical. A solução política passa pela aceitação de
nuanças, de soluções imperfeitas, mas que são parte
de um processo dinâmico que caminha em direção a
uma melhora das condições. No cinema, ao contrário, é necessário fazer coisas radicais, fortes, para que
as questões sejam vistas em sua dinâmica dialética.
Os israelenses devem parar de achar que podem
ocupar territórios palestinos, e os palestinos devem
admitir que há um direito de coexistência, um ao lado do outro, sem o uso da força, sem intimidação.
Sheila Schvarzman é historiadora e professora visitante do departamento de multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual
de Campinas.
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