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Em "Por Onde Anda a Virtude?" a italiana Fernanda Pivano ficcionaliza os temas da virada feminista
A arte do fingimento
Maria Betânia Amoroso
especial para a Folha
Ao terminar a leitura do primeiro
romance de Fernanda Pivano,
"Por Onde Anda a Virtude?", escrito aos 67 anos, em 1986, duas
cartas recolhidas nos volumes da correspondência do escritor italiano Cesare Pavese (1908-1950) surgem na lembrança,
de modo especial. Pavese e Pivano foram
muito próximos. Seu professor no colegial, foi ele quem sugeriu a ela que se dedicasse aos estudos da literatura americana. Quando escreve seu primeiro romance, Pavese já está morto há muito
tempo -e o mundo se transformara. O
que hoje chama a atenção nas cartas é o
que delas reaparece, em forma literária,
neste romance. Por essa razão, aqui se
começa pelas cartas, e não pelo romance.
São, na verdade, dois textos em prosa
que têm como centro a figura da ex-aluna: "Análise Amorosa de F." e "Os Medos de F.". As datas das cartas, 20 de outubro de 1940 e 15 de março de 1941.
Em ambas Pavese observa de perto, e
num estilo inconfundível, os detalhes
psicológicos da personalidade exibida
pela jovem, então com 23, 24 anos. Um
desses detalhes é a insistente divisão da
vida em duas partes, em um "antes" e
um "depois", separadas por uma "crise":
antes, quando morava em Gênova, e
agora, que está em Turim; antes, quando
era rica, e agora, que é pobre; quando era
contemplativa, e agora, que é ativa;
quando era feminina, e agora, que é masculinizada.
Pavese entretanto aponta para a ausência de toda explicação -citada por Pivano ou imaginável por quem a ouve- para tal transformação. E conclui que se
trata não de uma lembrança de algo que
ocorreu, mas de um desejo, de uma decisão, de um programa. As confissões ensaiadas com os amigos
nunca chegam a se configurar enquanto tais: Fernanda jovem se vigia, se
exibe com muita consciência e muito pouco se
fica sabendo da sua verdadeira natureza.
A associação involuntária da narrativa de Pivano
às cartas se dá por vários motivos.
Por exemplo, pela divisão do romance
em partes. Na primeira, a jovem mulher
viaja pelo mundo com o marido, colhendo olhares e gestos dos homens que a desejam. Observa também o pouco interesse, a pouca atenção do homem que está a
seu lado, distraído com suas máquinas
fotográficas. Na segunda, há a separação
informal do casal que, para a narradora,
é o elemento diferenciador de duas fases
de sua vida, assim apresentada: "Eis a
ruptura necessária a um romance, dizem
os críticos, para que seja um verdadeiro
romance. Aconteceu quando Lino me
fez o pedido típico da andropausa: o "espaço". Jurou-me que, se lhe desse espaço,
nunca me abandonaria" (pág. 112). Esse
mesmo argumento duplo -a crise matrimonial e a crise no romance- vai reaparecer na pág. 147, já na terceira parte,
quando o marido sai definitivamente de
casa.
A primeira e a segunda partes são definidas por uma espécie de fronteira, um
antes e um depois da separação, que são
também os tempos pré-feministas seguidos pelo feminista. Teríamos então a
mulher mais velha que teve suas primeiras experiências do amor e do sexo antes
das décadas da liberação feminina no século 20. Uma crise, a escritura de um romance, o fim do casamento. E uma outra
mulher?
Ocorre que, emprestando à narradora
muitos de seus dados biográficos, Fernanda Pivano faz da personagem uma
mulher muito bem-sucedida, assediada
por fãs, por pretendentes, por amigos.
Alguém que convive com a geração beat
americana -Jack Kerouac, Allen Ginsberg, entre outros-, que é reconhecida,
não só na Itália, como a amiga dos escritores americanos famosos e uma das responsáveis, como tradutora premiada,
pela divulgação da obra de Faulkner e
Hemingway na Itália, que
vive intensamente a contracultura dos anos 60. O
protótipo da mulher moderna.
A segunda razão pela
qual lembramos de Pavese desenhando o perfil da
jovem amiga é que no livro, na verdade, não chegamos a saber nada sobre "a verdadeira
natureza" da narradora. Há um pudor
que constrange. Exibe uma série infindável de homens seduzidos pela sua figura
quase virginal, anunciando-os pelos subtítulos dos capítulos como "Robert, o Almofadinha"; "Aldo, o Diretor"; "Alberto,
o Michê"; ou ainda "A Gruta de Alex" e
"O Tobogã de Neno".
Seria até possível ver na enumeração
de homens assim nomeados uma irônica
referência a características do gênero
pornográfico, mas o sorriso maroto dessa narradora que deveria ser velha, mas é
pueril como uma criança, vem acompanhado pela exibição de suas jóias, bijouterias, roupas, casaco de pele, das viagens
exóticas pelo mundo onde o outro, se for
homem, é só mais um seduzido ou então
é o espelho invertido do europeu. E há a
distribuição generosa do adjetivo "delicioso" que tão bem retrata o vocabulário
das senhoras "per bene" italianas.
Não falta, portanto, o que criticar nessa
personagem feminina que Fernanda Pivano cria a partir, irrefutavelmente, da
sua própria vida. Antipática, como boa
histérica ela posterga tanto a entrega
amorosa, tão desejada e tão temida, que
nós, leitores e leitoras da tarda modernidade, cansamos de esperar. Contudo na
terceira parte do livro (talvez a síntese, a
da transformação final?) surge um diálogo significativo entre ela e um amigo psicanalista que, depois de ler as histórias
que a narradora-escritora escrevera, faz a
crítica à sexofobia ali implícita. A narradora se defende usando a ficcionalidade a seu favor: as histórias são inventadas e sinceras. Astutamente, a autora exibe aqui o conhecimento dos pontos vulneráveis da sua narrativa -o que era "vício" no perfil psicológico traçado por Pavese se transforma em estilo. O resultado literário deste livro é mais "esperto" do que "bom". Talvez esteja na mestria na arte de escamotear o interesse deste romance. Essa é a sua grande virtude.
Maria Betânia Amoroso é professora do departamento de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e autora do livro "A Paixão pelo
Real - Pasolini e a Crítica Literária" (Edusp).
Por Onde Anda a Virtude?
238 págs., R$ 29,00
de Fernanda Pivano. Trad. Mariarosaria Fabris. Ilustrações de
Luis Paulo Baravelli. Berlendis & Vertecchia Editores (r. Moacir
Piza, 63, CEP 01421-030, SP, tel 0/xx/11/3085-9583).
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