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+ sociedade
O escritor argentino, que virá à Bienal do Rio, em maio, diz que a
simulação democrática é a grande ameaça aos países latino-americanos
A doença do dogmatismo
Giovanna Bartucci
especial para a Folha
Ensaísta e poeta premiado, com obras traduzidas
para diversas línguas, tradutor para o espanhol
de autores como Machado de Assis, Guimarães
Rosa, Drummond, Mario de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, Santiago Kovadloff estará no Rio de Janeiro, a convite da editora José Olympio, para o lançamento de seu livro "O Silêncio Primordial" (tradução
de Eric Nepomuceno e Luis Carlos Cabral), que acontece durante a Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, entre 15
e 25 de maio. Nascido em Buenos Aires, em 1942, Kovadloff é professor convidado e conferencista em universidades na América Latina, EUA, Europa e Israel. Em
1998, incorporou-se à Academia Argentina de Letras.
Poeta, contista, autor de literatura para crianças e tradutor, o sr. afirma ter escolhido o ensaio como território para suas idéias. Por quê?
Em primeiro lugar, penso que os escritores não escolhem os gêneros nos quais trabalham. Somos escolhidos por eles. Parece-me que, se eu pudesse escolher um gênero literário, eu gostaria de escrever teatro. No entanto nunca tive o desejo de escrever teatro
e, sim, a fantasia de querer escrever teatro. E não saberia lhe dizer a razão.
Em um de seus livros, o sr. afirma que a "fé não implica a
confiança no possível, senão que é o resultado da entrega ao impossível". O sr. é um homem religioso?
Sou. Mas não sou um homem ritualista. Não acredito na palavra inamovível, à medida que respeito a interpretação. Não acredito na existência de um Deus
criador, mas na existência de um enigma da origem.
Eu não devo resolver esse enigma, e, sim, sustentá-lo. Daí que o dogmatismo é, para mim, uma doença.
Parece-me que sua obra repousa na idéia de que uma das
mensagens essenciais da literatura consiste em dizer que
nada caberia definitivamente na palavra e que, assim
sendo, seria imprescindível voltar a dizer. O que o sr.
acha disso?
Sim. E acredito que a tradição judaica tenha grande
influência na minha formação. Sinto que, não tendo
tido a chance de ter uma herança direta grega, tive a
sorte de ser judeu, uma tradição que penso ser o
maior capital espiritual que poderia ter recebido.
Dentro desse capital, há um conceito fundamental,
que tem agido em mim de maneira fundante, o de
interpretação. A interpretação é, de fato, a grande tarefa encomendada aos judeus, ou seja, a interpretação da palavra bíblica como uma tarefa imprescindível e infinita. Interpretar é indispensável. A interpretação é a necessidade de você se apropriar da palavra
de Deus, para trabalhá-la segundo as necessidades
da sua experiência. Assim, o ensaio é o gênero que
me permite dramatizar ao máximo a experiência da
interpretação, uma vez que é um gênero de elaboração hipotética incessante, no qual você não pode findar a interpretação
numa tese que não possa ser revista.
Assim, interpretação e ensaísmo são
experiências correlativas, em mim.
Some-se a isso, também, o fato de que
o escritor é, para mim, o homem que
risca. Riscar, corrigir, isso é escrever.
Penso que a maior virtude do escritor
é a de uma infinita paciência.
O que o sr. pensa do conflito entre judeus e palestinos no
Oriente Médio?
Essa é uma das tragédias mais profundas de Israel e
do povo palestino. O povo palestino não só tem direito de ter o seu próprio Estado como também é indispensável para o judaísmo de Israel que esse Estado exista. [O premiê] Ariel Sharon é uma figura trágica na vida do judaísmo contemporâneo, uma vez
que mostra a incapacidade que o governo israelense
tem de levar adiante projetos de conciliação pacífica
com a cultura palestina. Israel, que é uma nação democrática, não terá porvir em termos democráticos
se a sua liderança continuar sendo militarista.
Uma das grandes ameaças à democracia é a simulação,
ou seja, a manutenção de uma aparência de democracia.
Acho que você tem razão. Os países da América Latina correm o risco permanente de uma simulação democrática porque não é possível conciliar a estabilidade constitucional e a legitimidade institucional
das democracias com a injustiça social.
À medida que as nossas democracias não resolverem o problema da estabilidade constitucional e do
desenvolvimento de políticas de justiça social, são
democracias aparentes.
Como no caso argentino?
Acredito que a democracia argentina seja um processo incompleto e permanecerá assim enquanto o
peronismo continuar à frente do país, uma vez que é
uma força antidemocrática na sua estrutura, ao não
privilegiar a supremacia do ideal republicano acima
dos interesses corporativos. Tivemos, nos últimos 20
anos, um progresso importante.
No entanto a atual crise argentina só poderá começar a ser resolvida por aqueles líderes que agirem em
razão da desestruturação do sindicalismo, da possibilidade de outorgar à Justiça a autonomia que hoje
ela não tem e à medida que as corporações privilegiarem consideravelmente os interesses da nação
acima dos interesses setoriais.
Qual é, da sua perspectiva, a responsabilidade do intelectual, no que diz respeito à atual crise mundial?
A responsabilidade primeira do intelectual é fazer
com que o relacionamento entre ética e política seja
cada vez mais profundo, ainda que essa conciliação
jamais possa ser definitiva. Mas é preciso que a política reconheça a sua dívida para com
a ética e que a ética compreenda que o
seu porvir é político, ou seja, que todos os relacionamentos éticos devem
se desenvolver numa práxis política,
uma vez que a política é o cenário em
que os homens tentam aprofundar a
sua capacidade de convivência.
"Ao alcance do homem está sempre a faculdade de legitimar o que lhe acontece":
essa é outra idéia que impregna a sua
obra. O sr. diria que a sua proximidade com a psicanálise
freudiana é grande?
A psicanálise é, hoje, cultura, ou seja, um dos instrumentos que a cultura tem para pensar a experiência
histórica do homem. Nesse sentido, a minha aproximação é dupla: fui e serei paciente psicanalítico, mas,
além disso, a leitura da produção psicanalítica nos
possibilita entender de maneira original uma das
condições da finitude humana, ou seja, o fato de que
o homem não é essencialmente um possuidor da
realidade. É uma criatura sujeita a leis tão determinantes da sua idiossincrasia, como uma criatura capaz de transformar a realidade por meio de sua própria iniciativa criadora. A psicanálise ilumina os limites e as possibilidades da nossa experiência.
Giovanna Bartucci é psicanalista, ensaísta, membro do departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e autora de, entre outros, "Borges - A Realidade da Construção" (Imago).
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