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A comédia humana da Bagdá
No prefácio à sua nova versão
francesa de "As Mil e Uma Noites" ["Contes des Mille et Une
Nuits", ed. Phébus], cujo primeiro volume saiu em 1986, o erudito e
tradutor de origem síria René Khawam
descreve a obstinada paciência que lhe
permitiu, depois de décadas de trabalho,
determinar as duas ou três versões confiáveis do manuscrito original, sem os
caprichosos acréscimos que recompiladores de várias épocas, no Ocidente, mas
também na Tunísia, na Síria e no Cairo,
se deram ao direito de incorporar ao texto original. Essa profusão de interpolações (entre as quais constam as histórias
de Aladim, de Ali Babá e de Simbad, o
Marujo, história esta que Khawan, por
ter encontrado os manuscritos originais,
muito mais antigos que o livro ao qual
foram anexados, publica em um volume
à parte) se deve a dois motivos distintos:
primeiro, à crença de que "As Mil e Uma
Noites" é um repertório popular de contos tradicionais que foi sendo recopilado
pelo tempo, obra de muitos autores desconhecidos que a tradição reuniu em um
único livro.
O segundo motivo, sobretudo no Ocidente, foi o sucesso da obra. Por causa
dele e da pressão dos editores, seu primeiro tradutor para o francês, Antoine
Galland, no início do século 18, teve de ir
acrescentando várias histórias que encontrou nos manuscritos mais díspares.
Pois bem, no prefácio ao quarto volume, Khawan arrisca a hipótese de que toda a obra poderia ter saído de uma mesma pena, no sul da China, porque uma
cidade dessa região, Kashgar, é citada
muitas vezes com evidente saudade.
Uma coisa é certa: do lugar obscuro em
que um homem desconhecido escreveu
ou compaginou essas histórias imortais,
uma extraordinária luz vem deslumbrando a humanidade inteira, todas as
suas culturas e civilizações.
"A Mulher"
"Transportemo-nos,
então -escreve Khawan-, à Bagdá de
fins do século 12 e início do 13. De fato, o
marco histórico das narrativas está perfeitamente datado (...), por mais que o
intemporal Harun al-Raschid seja às vezes chamado a representar um papel na
intriga de algumas histórias. Descobriremos um islã que tem bem pouco a ver
com o que podemos observar hoje em
dia. Um islã que responde à crise que o
assola (as cruzadas, a ameaça dos mongóis, a insurreição das minorias) com
tais mostras de imaginação, criatividade
e liberdade, que literalmente nos subjuga. Testemunha dos desmandos dos poderosos, o povo, que não se deixa enganar, se dispõe a destituí-los. É ele, o povo,
que fala no livro, sem precauções oratórias. E, por trás dele, com ele, a Mulher,
fermento de todas as transformações: intratável e astuta, submissa a um destino
implacável ou rebelde à condição injusta
que a lei lhe impõe ferozmente, independente ou escrava da paixão."
Essa exata descrição de um livro excepcional, criado um século antes de Dante e
um pouco mais do "Decamerão", de Bocaccio, embora oferecida por um de seus
mais minuciosos leitores contemporâneos, é imediatamente perceptível também para o profano. A quase infinita humanidade que se agita em suas páginas é
dotada de uma intensa vivacidade.
Nelas, sensualidade e misticismo, naturalismo e magia, humor e tragédia, sátira e filosofia se entrelaçam com surpreendente fluidez em relatos realistas
ou fantásticos, fabulosos, solenes ou grotescos e, sobretudo, em um contraponto
constante em que as peripécias narrativas se enriquecem de comentários ou de
glosas em verso. Síntese de uma civilização, pode-se dizer que "As Mil e Uma
Noites", embora tenham alcançado o
êxito no Ocidente no auge da moda
orientalista, é um livro totalmente despojado de exotismo para quem sabe ler.
Leitor próximo
É evidente que os
contos que o compõem são dirigidos a
um leitor próximo e que as invenções
fantásticas ou mágicas, os bruscos deslocamentos no tempo e no espaço, as hipérboles arquitetônicas ou anatômicas,
as coincidências inverossímeis (lugar-comum da literatura antiga) e os excessos tanto no prazer quanto no martírio,
nada disso está ali para enganá-lo ou
passar por autêntico, mas constitui o arsenal tópico destinado a provocar seu
deleite.
E mais: das aventuras desenfreadas de
tantos personagens do livro poderiam
deduzir-se os hábitos sedentários de seus
leitores, assim como da profusão de alimentos e riquezas e de sua enumeração
quase obsessiva, seu ascetismo e sua pobreza. Foi na solidão das masmorras que
Sade concebeu as mais detalhadas orgias. Diga-se de passagem, aliás, que o
marquês deve ter levado em conta a estrutura de "As Mil e Uma Noites" para
a organização ultrametódica de "Os 120
Dias de Sodoma".
Um dos traços formais mais importantes de "As Mil e Uma Noites" talvez seja o
uso sistemático da narração em "caixas
chinesas" (ou seja, a história dentro de
outra história) e, principalmente, a constante interrupção dos relatos, que faz
com que pouquíssimas histórias sejam
contadas de uma vez, sendo sempre suspensas pela intercalação de uma nova
história no transcurso da anterior. Essa
característica seria um argumento a favor da tese de um autor único, pois numa
recopilação tradicional as histórias estariam dispostas uma após a outra, prescindindo-se do artifício literário de interrompê-las de modo sistemático para aumentar o suspense.
Vale lembrar que os personagens do livro não se contentam em viver histórias
extraordinárias: também morrem por
escutá-las, expõem-se ao perigo pelo desejo de desfrutar desse prazer. Às vezes, a
curiosidade por aventuras alheias contribui para a perdição dos personagens,
mas todos, dos vizires até os mais humildes pescadores, são capazes de arriscar o
pescoço por ouvir seu relato. Outras vezes, é o relato de sua própria aventura
que lhes salva a vida. Talvez não exista no
mundo um livro em que o fascínio da ficção seja tão onipresente e intenso. E
mais, talvez esse fascínio seja seu tema
central.
Amansar o tirano
A personagem
que encarna esse poder da ficção, Sherazade, "a tecelã de noites", é uma das mais
complexas da literatura universal. Filha
do vizir incumbido de, a cada amanhecer, executar a mulher que o rei escolheu
na véspera, Sherazade "tinha lido todo tipo de livros e escritos, estudado a obra
dos sábios e os tratados de medicina. Sabia de cor muitos poemas e histórias, assim como os provérbios populares, as
sentenças dos filósofos, as máximas dos
reis. Não se contentava em ser inteligente
e sábia, queria ter o pleno domínio das
letras. Quanto aos livros que lera, não lhe
bastara folheá-los: ela os estudara com
cuidado".
Em sua tentativa de amansar o tirano e
livrá-lo do seu sangrento hábito, Sherazade recorda a Helena de "Tudo Está
Bem Quando Acaba Bem", de Shakespeare (uma jovem sábia que cura o rei de
uma fístula), mas também, como Ifigênia, se dispõe ao sacrifício e, como Antígona, é dona de uma forte personalidade
e de uma grande lucidez política. Graças
a sua habilidade e sua finura psicológica,
consegue apanhar o autocrata assassino
na rede de suas histórias.
Bagdá, jóia arcaica deitada entre o Tigre e o Eufrates, conheceu uma brilhante
civilização nos dois ou três séculos anteriores à data dos primeiros manuscritos,
sob o reino dos califas abássidas. Foi esse
o berço do grande livro. E, até onde chega a memória humana, esses poucos quilômetros quadrados da Mesopotâmia
condensam as principais conquistas da
humanidade.
Atenas, Florença, Bagdá
No volume dez da enciclopédia "Universalis", na
página 125, encontramos a seguinte enumeração: "Berço do monoteísmo, da
meditação suméria, que foi a origem dos
dois Testamentos e do islã, o Iraque é um
condensado sociológico e espiritual de
alto valor, simbolizado pelo alfa do Dilúvio e o ômega da Revelação. Ali foram
concebidas as especulações algébrico-astronômicas do pensamento; codificada,
a partir de Hamurábi, a lei das cidades;
definidas as estações do ano; delimitados, no zodíaco, os espaços do céu; fundados a agricultura, a monarquia, os ritos comerciais; descobertas as equações
sobre as quais se edificaria, por meio da
abóbada, a arquitetura monumental do
Egito e da Grécia".
Equiparável à Atenas do "Banquete"
ou de Aristófanes, à Florença de Dante e
de Boccaccio, Bagdá concentra no livro
que a evoca o universo inteiro, a comédia
humana em suas múltiplas possibilidades e situações, mas também o submundo infernal com seus gênios maléficos e
seus magos tenebrosos e, no outro extremo, o resplendor abstrato e onipresente
do divino. Como quase toda grande literatura, "As Mil e Uma Noites", a partir de
um lugar bem delimitado no espaço e no
tempo, convoca a totalidade do existente. Em 1258, os mongóis incendiaram
Bagdá, mas as razões desse crime já estavam escritas na surata 103: "Juro pela hora da tarde, o homem busca sua própria
perdição".
Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino,
autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Cia. das Letras).
Tradução de Sergio Molina.
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