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Em "O Que Sobrou do Paraíso?", o francês Jean Delumeau refaz a história
das representações do céu na cultura ocidental desde o Gênesis até o século 20
Uma geografia da paz eterna
Reprodução
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"Livro do Céu e do Mundo" (1377), iluminura de Nicolas Oresme |
Mary del Priore
especial para a Folha
Se "o inferno são os outros", como
dizia Sartre, o que seria o paraíso?
Para Voltaire, era lá onde ele estivesse. Para Baudelaire, seriam as
drogas. Hoje, os verdadeiros paraísos
-tudo indica- são os perdidos. São
aqueles que, na linha do horizonte, recuam a cada vez que nos aproximamos,
tornando-nos mais infelizes do que já somos. As variações na compreensão do
que seja o céu e o inferno mostram que
essa simetria quase perfeita se modificou
ao longo do tempo, ensejando uma proliferação de discursos. Mas seria preciso
voltar no tempo para assinalar os primeiros passos da história da idéia de paraíso, alguns deles correspondendo ao
nascimento da modernidade.
O maior especialista no assunto é Jean
Delumeau, que, em livros sobre a história do sentimento religioso, vem se perguntando sobre sua evolução. "A história do paraíso", explica, "é, sobretudo,
aquela de suas evocações sucessivas".
Tendo exaurido a história do medo e da
culpa, o renomado professor do Collège
de France examina, em "O Que Sobrou
do Paraíso?", o que considera uma necessidade inalienável, a felicidade, sublinhando que essa busca se exprimiu, entre os séculos 13 e 20, por meio do mito
do paraíso. Um mito que ele desvela e estuda no texto de místicos como Teresa
d'Ávila, escritores como Dante, pintores
como El Greco e Pozzo.
Textos fundadores
Quase 600 páginas perfazem um fascinante itinerário.
Primeiramente, Delumeau examina os
textos fundadores, como o Gênesis ou
"A Cidade de Deus", o céu na cosmografia medieval, sonhos e visões, as viagens
ao além e a literatura mística.
A seguir, analisa a Jerusalém celeste em
escritos e em imagens, suas transformações em palácio, igreja e jardim, sua flora
e perfumes. Os anjos merecem um capítulo extraordinário. Como se vestiam,
qual o significado das cores e o simbolismo do ouro. Quem mais habitava o paraíso? Deus na forma de cordeiro, Maria,
Adão e Eva, os santos e os eleitos brindados com juventude eterna.
Na terceira parte, estuda o aparecimento da música celestial e depois o apagamento dos anjos músicos, as relações
entre a verticalidade e a horizontalidade
na perspectiva pictórica e na arquitetura,
o papel do círculo e da cúpula, símbolos
da união entre Deus e os homens na arte
barroca e as tentativas, na arquitetura, de
captar a irrupção do divino. A quarta
parte, a mais pessoal delas, é consagrada
ao processo de desconstrução das representações do paraíso, sublinhando as
rupturas trazidas pela modernidade na
forma de uma poetização constante do
paraíso na literatura e uma crescente
abstração no discurso teológico.
Corações e mentes
Além disso, Delumeau demonstra como as teses heliocêntricas fazem desaparecer as esferas
celestiais, desvalorizando a noção de repouso enquanto Galileu detona a idéia
de um céu harmônico e inalterável. Delumeau lembra, contudo, que, apesar do
medo da morte e da crescente secularização, a esperança de um dia reencontrar
parentes e amigos segue interpelando a
cultura ocidental. Eis por que, em filigranas, o autor se interroga sobre o futuro
dessa aspiração que a cultura medieval
transformara numa virtude: a esperança
cristã, em um tempo a eternidade e, num
lugar, o paraíso.
Tributário de pioneiros como Lucien
Febvre e, depois, Philippe Ariès, a quem
atribui enorme influência em seus trabalhos, Delumeau optou por estudar sentimentos e comportamentos coletivos sob
o guarda-chuva da chamada "história
das mentalidades". Aí instalado, deparou-se com temas incomuns que lhe permitiram desvendar abordagens e problemas pouco ou nunca frequentados pela
historiografia.
O atual trabalho inscreve-se num tríptico que já pensou antes o horror do pecado e o desejo de proteção. Pensa agora
as delícias da vida eterna. Sempre munido de volumosos dossiês documentais,
Delumeau faz emergir continentes submersos graças à firmeza e erudição de
seu discurso, convidando o leitor a percorrer um vasto afresco da civilização
cristã e das sobrevivências pagãs dentro
dela. Criticado por utilizar documentos
que provêm de camadas cultivadas da
sociedade e que, portanto, não revelariam as formas de sentir e pensar na
mentalidade popular, ele se defende dizendo que os dois principais materiais
sobre os quais trabalha, a imagem e o escrito, são efetivamente privilégios das
elites. Mas que os estudos sérios consagrados às relações entre "cultura de elite"
e "cultura popular" chegaram à conclusão de que as duas se interpenetram. Afinal a sociedade não é composta por conjuntos estanques.
Ao retraçar com grande competência o
imaginário e a dimensão do paraíso perdido, Delumeau nos dá, em tempos de
guerra, uma irônica lição: na geografia
medieval, um dos lugares do paraíso era
justamente entre o Tigre e o Eufrates. Lá
mesmo, no atual Iraque. A pergunta que
dá título ao livro, "O Que Sobrou do Paraíso?", nesse caso já tem resposta: nada!
Ainda assim, vale a pena, e muito, essa
viagem até lá...
Mary del Priore é professora de história na USP e
coordenadora do Arquivo Nacional (RJ). É autora
de, entre outros, "Revisão do Paraíso" (Campus).
O Que Sobrou do Paraíso?
566 págs., R$ 54,00 de Jean Delumeau. Tradução de Maria Lúcia Machado. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/
xx/11/3707-3500).
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