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"Guimarães Rosa - Fronteiras, Margens, Passagens" investiga os arquivos do
autor de "Grande Sertão: Veredas", como diários, cartas, entrevistas e discursos
Travessia por redes de sentido
Rosa projeta sensações, afetos, enredos e desenredos que politizam o cotidiano, extraviando-o de sua banalidade
Evando Nascimento
especial para a Folha
As leituras dos textos de Guimarães Rosa se multiplicaram nos
últimos anos, sobretudo com a
defesa e a publicação de teses
universitárias, além de comunicações e
artigos em anais de colóquios especializados, como o que se realizará no mês de
agosto, em nível internacional, pela terceira vez na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Igualmente, é sob o signo rosiano da
travessia que se fará em julho o congresso da Associação Brasileira de Literatura
Comparada, na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. O estudo criterioso
de Marli Fantini, "Guimarães Rosa
-Fronteiras, Margens, Passagens", se inscreve nessa comunidade de leitores que
busca dar conta do vasto arquivo de Rosa, chegando nos melhores casos a contra-assinar e a reinventar seus textos.
Assinale-se que o conjunto disponível
da obra de Rosa foi enriquecido com a
publicação, no ano passado, da preciosa
correspondência com o tradutor alemão
Curt Meyer-Clason e dos escritos afetivos que enviou a suas duas netas "adotivas". Lembre-se ainda a reedição das
cartas com o tradutor italiano, Edoardo
Bizzarri. O estudo de Fantini comprova
de maneira arguta que esse material de
missivas, diários, ensaios, entrevistas,
discursos e outros documentos é uma
extensão da literatura mesma, evidentemente sob outra inscrição.
"Hábil estrategista"
Em Rosa, a ficcionalização do acervo extraliterário é
constante, na medida em que, por exemplo, suas cadernetas de notas, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da
USP, contêm todo tipo de informações
extraídas da realidade, para serem aproveitadas como substrato criador.
"Hábil estrategista, Guimarães Rosa
conhece profundamente os lances mediante os quais pode reciclar os lugares
fixos da geografia e da história, para criar
múltiplas redes de sentido, as quais vazam das linhas de fuga de cada um de
seus textos, para se enredar nas combinações recursivas entre vida e obra do escritor", diz Marli Fantini.
Desse modo, sob a competente orientação de Eneida Maria de Souza, professora emérita da Universidade Federal de
Minas Gerais, desde o título, "Guimarães
Rosa", percebe-se a intenção de não se
privilegiar este ou aquele texto, embora
seleções sejam feitas, de acordo com critérios temático-formais, aliando crítica
literária e cultural de alto nível.
Cercando-se de seus teóricos e críticos
preferenciais, Walter Benjamin, Hugo
Achugar, Gilles Deleuze, Ángel Rama,
Jacques Derrida, Silviano Santiago, entre
outros, Fantini empreende uma trajetória cuja excelência a coloca ao lado de leituras anteriores de Rosa, tais como as de
Antonio Candido, Augusto de Campos,
Walnice Galvão, Kathrin Rosenfield,
João Adolfo Hansen, Eduardo Coutinho,
alguns desses citados pela autora.
Balizas e cercas
A interpretação de
Fantini propõe uma forma de desterritorialização cultural via literatura, para
utilizar um termo de Deleuze. Guimarães Rosa trabalhou nos últimos anos de
vida como chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras do Itamaraty, mas paradoxalmente traçou uma geopolítica literária toda feita de ultrapasses, extravios, desgarres e aberturas para o desconhecido. O jagunço aposentado Riobaldo, narrador-protagonista de "Grande
Sertão: Veredas", gostaria de ver os pastos todos demarcados, mas acaba constatando que este mundo é muito misturado, "lugar sertão se divulga: é onde os
pastos carecem de fechos". É da natureza dos bois atravessar campos geralmente ignorando balizas e cercas.
Rosa projeta, em seu mundo de papel,
destinos, sensações, afetos, enredos e desenredos que politizam o cotidiano, extraviando-o de sua contumaz banalidade e demonstrando que o dia-a-dia pode
ser tão extraordinário quanto a mais fabulosa estória. Essa literatura pensante
reflete os comportamentos (locais e universais), os jogos de valor (artísticos, filosóficos, existenciais), os embates pelo
poder (lutas entre bandos rivais, escolhas de chefe, estabelecimento de domínios), além da intrincada questão da diferença sexual e do homoerotismo que a
figura de Diadorim evoca, e muito mais.
Exemplo singular é o de "A Menina de
Lá" (das "Primeiras Estórias"), aquela
que habita um suposto aqui e agora, mas
que é de fato o elemento transcendente
no "aquém-túmulo", o estrangeiro no
familiar. Com a figura de Nhinhinha e
outras similares, Rosa tece uma combinação de arte naïf, por meio de uma fábula debruada de estrelas, pássaros, flores, arco-íris, no limite da garatuja infantil, e uma erudição como poucas na literatura ocidental, em diálogo com as vanguardas do século 20.
A pobreza latino-americana se torna o
ponto de partida para o deslocamento da
ótica governamental, de políticas culturais deletérias, incapazes de dar conta do
popular sem absorvê-lo num populismo
estéril. Rosa superdimensiona a potência
que vem das camadas excluídas da economia planetária, mas que insistem em
se reinscrever no centro, como uma
margem que obstinadamente retorna do
ponto em que gostariam de fixá-la, engendrando assim uma "comunidade alternativa", no dizer de Fantini.
Outra vertente brilhantemente explorada pelo livro está nas cartas com Meyer-Clason e Bizzarri; Guimarães Rosa
co-assina a tradução, sugerindo transposições, cortando, decifrando trechos e
teorizando sobre o traduzir. Pelo trabalho de parceria com os tradutores, conclui-se que é por meio de um nódulo praticamente intraduzível que o texto poético pode ser traduzido. Em relação a este,
somente pode ocorrer recriação ou, como gostava de dizer Haroldo de Campos, "transcriação" de signos de uma língua a outra.
"Traduzadaptação"
"Traduzadaptação" é o termo cunhado para o gesto
quase impossível de traduzir o autor de
"Sagarana". Se na base de sua escrita encontram-se heteróclitas formas de transculturação, ao leitor-tradutor cabe redobrar tais estratégias "traduzadaptando"
o universo pluricultural de Rosa num
outro espaço idiomático. Traços dessa
quase intraduzível poética rosiana comparecem nas lindíssimas "Imagens do
Grande Sertão", do artista plástico juiz-forano Arlindo Daibert, algumas delas
reproduzidas no livro de Fantini.
Ao trabalhar simultaneamente com diversas línguas, por meio de variados registros e entonações, Rosa funciona ao
mesmo tempo como etnólogo e arqueólogo, escavando os estratos culturais para encontrar a preciosidade arquietnográfica. Como ele não se cansa de repetir,
os outros, os de "lá", desdobrados em cegos, velhas, crianças, desterrados de toda
sorte, é que sabem o que nós, citadinos,
ignoramos. Eles é que podem nos ensinar a ver através de novas lentes, retentivas, as da própria ficção, como no caso
paradigmático do menino de "Corpo de
Baile", Miguilim, que passa de uma semicegueira à visão intensa das coisas e
cores do mundo.
Evando Nascimento é professor-adjunto de teoria da literatura na Universidade Federal de Juiz de
Fora e autor de "Derrida e a Literatura" (editora da
Universidade Federal Fluminense).
Guimarães Rosa - Fronteiras,
Margens, Passagens
296 págs., R$ 35,00
de Marli Fantini. Ed. Senac/Ateliê (r. Manuel Pereira Leite, 15, CEP 06709-280, Cotia, SP, tel. 0/ xx/
11/ 4612-9666).
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