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Ponto de fuga
Viagem ao céu
"Não é estranho que tripas de carneiro
possam transportar a alma para fora do
corpo dos homens?", perguntava um
personagem de Shakespeare. Tripas, hoje, deram lugar a outros materiais, mais
modernos, para fabricar as cordas dos
violinos, das violas, dos violoncelos. Não
importa a mudança: essas cordas, ao vibrarem sob seus arcos, continuam enlevando as almas. A apresentação que, não
faz muito, abriu a temporada do auditório BankBoston atingiu a estratosfera.
Foram três recitais do quarteto tcheco
Prazak. O último programa, no dia 8,
reunia o nš 1 de Zemlinski, o nš 2, "Cartas
Íntimas", de Janacek, e o nš 11 de Dvorak.
O quarteto de cordas manifesta, na
música do Ocidente, uma unidade como
que natural graças ao parentesco dos
timbres e da técnica de execução. Essas
semelhanças não anulam a personalidade de cada instrumento; da fusão brota
um poder secreto. As quatro vozes expõem a arquitetura das obras, revestem-na de emoções sonoras e impõem ao ouvinte, a um só tempo, compreensão e
sentimento.
É preciso que os integrantes de um
quarteto tenham longa prática conjunta.
Exige-se deles virtuosidade impecável,
no entanto capaz de submeter os brilhos
individuais à luminosidade musical coletiva. Não se atingem facilmente essa altitude e esse equilíbrio. Os que conseguiram passaram para a história, como Capet, Busch, Vegh, Amadeus. A essa lista
lendária pode se acrescentar hoje o quarteto Prazak: pulsação rítmica, energia incendiada, discurso que vem de dentro,
coerente, sem uma falha, sem que nunca
se percam as belezas sonoras e plenas.
Apocalipse - Foi uma prova de fogo. A
Osesp interpretou, em concerto recente
na Sala São Paulo, o "Réquiem Polonês",
de Krzysztof Penderecki. Obra intrincada, escrita para uma orquestra enorme e
para um coro que enfrenta dificuldades
espinhosas. O compositor regeu: músicos e coristas responderam esplendidamente às menores nuanças, às precisões
mais exigentes. A composição é longa:
um hora e 45 minutos de música.
Penderecki obteve grande celebridade
muito cedo. Soube empregar as ásperas
sonoridades de vanguarda não como
aventuras formais, mas em benefício de
um sentido do espetáculo e do drama.
Elas funcionam à perfeição em sua ópera
"Os Demônios de Loudun", estreada em
1960, que retoma um tema várias vezes
tratado na literatura, no teatro e no cinema: outro polonês, Jerzy Kawalerowicz,
o havia apresentado, em 1964, num filme
soberbo, "Madre Joana dos Anjos". A
história é verdadeira: na França do século 17, sob o reino de Luís 13, um convento
de freiras possuídas pelo demônio induz
um processo iníquo que implica, condena, martiriza, queima vivo o padre Urbain Grandier, inocente. A histeria das
cerimônias exorcistas e os horrores das
torturas levaram Penderecki a paroxismos sonoros assustadores.
No "Réquiem", ouvido na sala São
Paulo, bem posterior como data aos
"Demônios" e diverso nas escolhas formais, se desencadeiam efeitos neo-românticos, eloqüentes, cujas intenções,
muito perceptíveis, parecem mais hábeis
que convictas. Dos modos meditativos,
do "Sanctus", do "Agnus Dei", emana
uma verdade interior.
Chamas - O quarteto "Cartas Íntimas",
de Janacek, foi inspirado pelo amor. Sua
forma está, por assim dizer, para além da
própria forma. A viola é o núcleo, o pólo,
em volta do qual giram fragmentos sonoros líricos, soturnos ou esperançosos.
Alternam-se gritos, prostrações, júbilos.
Sua execução não pode ser feita apenas
de notas. É preciso musicalidade exaltada, como demonstrou o quarteto Prazak.
Se os intérpretes não forem investidos
pela paixão que ela pressupõe e que lhe
confere unidade, a obra perde seu sentido e sua coerência.
Oásis - Em região distante, inóspita, paulistana até a alma, entre uma favela enorme, arranha-céus luxuosos de negócios e
as águas infectas do rio Pinheiros, situa-se o Espaço Cultural BankBoston. Há nele uma sala ideal para música de câmera.
É elegante, calorosa e confortável. Tem
uma acústica seca, nítida, analítica, valorizando os sons que se entrelaçam sem
confusão nem amálgama.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br.
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