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EM "A ASSUSTADORA HISTÓRIA DO HOLOCAUSTO", O CANADENSE MICHAEL R. MARRUS DEFENDE QUE HITLER CRIOU UM REGIME UTÓPICO E DIZ QUE O EXTERMÍNIO DOS JUDEUS PRECISA SER VISTO EM UM CONTEXTO MAIS AMPLO, QUE LEVE EM CONTA O
CONJUNTO DAS POLÍTICAS POPULACIONAIS DOS NAZISTAS
Metodologia do 3º Reich
Fabiano Maisonnave
da Redação
Escondido sob o pavoroso título "A Assustadora
História do Holocausto" [Ediouro, trad. de Alexandre Martins, 436 págs., R$ 39] -e com um
atraso de 16 anos-, acaba de sair nesta semana
no Brasil um dos mais importantes livros sobre o tema.
Trata-se de "O Holocausto na História" (tradução do título original), do historiador judeu canadense Michael
R. Marrus, considerado um dos principais estudiosos
do assunto no mundo.
A obra é um grande ensaio historiográfico e se propõe
uma missão dupla: ao analisar a produção de seus colegas sobre os diversos aspectos envolvendo a compreensão do extermínio sistemático de judeus pela Alemanha
nazista, Marrus oferece ao mesmo tempo um panorama complexo dos diversos fatores que levaram ao Holocausto. Defensor da "normalização" e da contextualização do estudo do Holocausto, Marrus coloca a história como o campo disciplinar por excelência para entender por que entre 5 e 6 milhões de judeus foram dizimados pelos nazistas.
Para ele, o fato de o Holocausto ter sido um caso único
na história não significa que esteja fora dela. Afinal, para os historiadores, nenhum evento se repete.
Ao problematizar -e não polemizar- o Holocausto,
Marrus consegue analisar com desenvoltura temas sensíveis, mas cruciais, para entender um dos maiores crimes da história. Entre algumas questões abordadas pelo livro estão: por que o genocídio dos judeus é diferente
do assassinato de outras cerca de 50 milhões de pessoas
durante a Segunda Guerra Mundial? Qual foi o envolvimento de outros países no projeto nazista de extermínio dos judeus?
Professor da Universidade de Toronto, Marrus, 62, foi
convidado em 1999 pelo Vaticano para participar de
uma comissão de seis estudiosos, que analisaria o papel
da Igreja Católica durante o Holocausto. A comissão renunciou em 2001, alegando que o Vaticano se recusou a
abrir seus arquivos. Leia, a seguir, a entrevista que o historiador concedeu por telefone e e-mail ao Mais!.
O sr. argumenta que os historiadores ainda têm dificuldade em abordar o Holocausto, devido a sua extrema
violência e unicidade. Quais são os principais desafios
para estudar o assunto?
Os desafios não são significativamente diferentes de
qualquer outra grande catástrofe. Pense em nossa
própria época, como Ruanda ou o Oriente Médio.
Em todos esses casos, as paixões dos indivíduos estão totalmente envolvidas e é extraordinariamente
difícil pressupor um nível de objetividade, que é natural quando lidamos com Egito Antigo ou Roma. É
simplesmente muito difícil para as pessoas lidarem
objetivamente com o assunto. Não obstante nós temos visto um processo lento e gradual, no qual a escrita da história da Segunda Guerra Mundial e do
Holocausto tem se normalizado. Eu não defendo
que os historiadores devam ser neutros e evitar julgamentos morais, mas aplicar à história do Holocausto o mesmo tipo de metodologia e métodos de
pesquisa que eles usam para outros temas. Acho que
isso está realmente acontecendo.
No seu livro -de 1987- o sr. menciona diversos vazios
na historiografia, como a história dos campos de concentração. Quais foram os principais avanços desde então?
Os principais avanços foram na área de material de
arquivo vindo do Leste Europeu, dos antigos países
soviéticos. Agora temos acesso a eles, o que não
acontecia até os anos 80. Isso é muito importante.
Não diria que as linhas gerais mudaram desde que
escrevi meu livro, mas os detalhes e as nuanças vindos dos trabalhos feitos a partir desses arquivos têm
sido bastante substanciais e importantes.
O sr. acha que os historiadores evitam estudar os campos
de extermínio por considerá-los mais do domínio da literatura e das narrativas de sobreviventes?
Não necessariamente. Vamos pegar como exemplo
o mais importante dos campos, o de Auschwitz-Birkenau. Hoje nós temos materiais de arquivo vindos
da antiga União Soviética que têm sido muito importantes para a reconstrução da evolução daquele
campo. E é muito importante entender a evolução
do sistema de campo, o que os alemães tinham em
mente em diferentes momentos, e o estudo de
Auschwitz faz isso. O assassinato de judeus europeus
pelos nazistas alemães precisa ser visto em um contexto maior, o das políticas nazistas populacionais,
do racismo nazista e do tratamento nazista dado às
populações do Leste Europeu, em geral.
Dizendo isso não significa que estejamos negando
ou ignorando a distinção das políticas nazistas com
relação aos judeus, que inquestionavelmente foram
diferentes. No entanto, se quisermos compreender
totalmente as políticas nazistas com relação ao judeus, é necessário colocá-las em um contexto maior.
Em Auschwitz, nós realmente vemos todas essas coisas se juntando.
E o que diferencia a política nazista com relação aos judeus se comparada com as políticas para eslavos e ciganos, por exemplo?
Primeiro, é importante notar que as políticas nazistas contra os judeus evoluíram até chegar ao assassinato em massa em toda a Europa. Estudar aquela
evolução é um dos estudos mais importantes que os
historiadores fazem. A diferença é que a visão nazista dos judeus é a de que todo o regime se acreditava
em conflito com o judaísmo mundial. Hitler não
analisava sob esses aspectos apocalípticos a relação
com eslavos ou qualquer outro grupo. Com os judeus, ele acreditava que havia um conflito de proporções cósmicas, que só poderia ser resolvido com
a morte de todos os judeus em que os nazistas colocassem a mão. Por outro lado, a idéia era criar uma
utopia racial, na qual os judeus seriam eliminados,
mas em que os eslavos seriam escravizados, e, os ciganos, removidos da área de domínio germânico.
Apesar dessa evolução na compreensão do Holocausto
feita pelos historiadores, a maioria das pessoas se informa mais sobre o tema a partir de filmes. Há diálogo entre
os estudos históricos e a produção cinematográfica?
Há muitos filmes sobre o Holocausto, e não é surpreendente que muitos deles sejam muito bons e,
outros, muito ruins. Mas você fez uma observação
interessante, muitas pessoas aprendem sobre o Holocausto a partir do cinema e da TV em vez de ler livros de história. Por outro lado, os diretores lêem livros de história -pelo menos espero que leiam-
para fazer os filmes, e acredito que seja possível que
bons diretores aproveitem os estudos que descrevo
no meu livro. Acho que é extremamente importante
que os diretores sejam fiéis aos registros históricos,
embora um filme como "A Vida é Bela", de Roberto
Benigni, por exemplo, não pretenda ser uma representação precisa. É um tipo terrível... É uma fantasia
sobre o Holocausto. Se fosse o único filme que uma
pessoa visse sobre o Holocausto, seria uma das visões mais distorcidas e imprecisas sobre o assunto.
E "O Pianista", de Roman Polanski?
Gostei muito dele, mas é importante ter em mente
que nenhum filme sozinho pode representar toda a
história do Holocausto; é só uma visão da realidade.
O premiê italiano Silvio Berlusconi comparou um eurodeputado alemão a um guarda nazista de campo de concentração. Também tem havido alusões ao Holocausto
quando se criticam as políticas de Israel com relação aos
palestinos. Isso não contamina os estudos históricos?
Sou totalmente contrário à manipulação do
Holocausto por motivos políticos. Não importa quem faça isso, se são políticos israelenses,
Berlusconi ou políticos alemães. Temo que haja culpa o suficiente circulando para que apenas uma sociedade ou grupo de pessoas seja
considerado o único responsável.
O sr. enfatiza que a Alemanha não atuou sozinha
nas políticas anti-semitas, mas que teve colaboração em diversos países. Quais são as principais variáveis que determinaram essas diferenças?
Eu cheguei ao tema estudando a França. O governo francês de Vichy era extremamente
cúmplice no assassinato de judeus daquele
país. Ao mesmo tempo, no entanto, e embora
possamos perceber o anti-semitismo em outros países, foi apenas a Alemanha nazista que
concebeu o projeto de aprisionar judeus em
todos os lugares da Europa e enviá-los para
campos para serem exterminados.
Essa é uma das peculiaridades do nazismo. Ao
contrário dos outros regimes na Europa, era
um regime utópico -uma utopia parecida
com um pesadelo. Os nazistas não estavam satisfeitos apenas em dominar o continente europeu, eles queriam transformá-lo. Na verdade, queriam transformar o mundo inteiro. E
um aspecto dessa transformação era a eliminação dos judeus.
Com os avanços sobre a compreensão do Holocausto, o papel de Hitler não tem diminuído nos estudos históricos?
Acho que é razoável afirmar que, nos últimos
50 anos, nossa visão sobre o regime nazista
tem se aprofundado e se dirigido muito mais
pela sociedade alemã como um todo. Portanto, além do estudo da liderança nazista e da de
Hitler em particular, temos estudos agora sobre os burocratas alemães, o Exército, os serviços sociais, a opinião pública e pessoas comuns, entre outros.
Mas Hitler continua a fascinar, parece que há
uma apetite sem fim do público em geral para
livros e filmes sobre ele.
Como o sr. analisa a posição do Vaticano durante o
Holocausto?
Não faz sentido pensar no papa Pio 12 como
um anti-semita. Ele não estava interessado em
judeus. Acho que ele sentiu que a Igreja Católica como instituição estava seriamente ameaçada por causa da guerra e queria fazer o possível para que ela saísse dela intacta. Ele certamente não estava interessado em quebrar tradições da igreja -que considerava os judeus
como um povo bem distante das obrigações
devidas a ela.
Ao mesmo tempo, era uma igreja universal,
que instintivamente resistiu aos pressupostos
racistas da Alemanha nazista, contrários às
prerrogativas da igreja. Então havia bastante
conflito entre os nazistas e a igreja, só que esse
conflito não era sobre o assassinato de judeus
europeus.
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