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Ponto de fuga
Cantos de Milão
Andrea Tamoni - 15.jan.2003/Associated Press
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Ensaio de "O Cavaleiro da Rosa", de Strauss, no teatro Arcimboldi |
Jorge Coli
especial para a Folha
O velho Scala fechou-se para reforma
durante três anos e deve reabrir para a
temporada de 2004. Enquanto isso, as representações de ópera se transferiram
para o Teatro degli Arcimboldi, construído na periferia de Milão, na Bicocca,
ex-bairro industrial da Pirelli.
Toda essa região foi agora transformada por obra do arquiteto Vittorio Gregotti, com edifícios diversos, entre eles a
nova Università degli Studi, e o teatro. É
uma arquitetura que recusa achados eloquentes ou extravagâncias. Retoma antes o tom discreto, digno, que parece
emanar de toda a cidade, conseguindo,
ao mesmo tempo, ser caloroso e ordenado. Arquitetura de metrópole opulenta,
feita com excelentes materiais, evitando
ostentações.
O teatro de Gregotti acolhe 2.400 pessoas. Grande, distante do centro e sem a
aura mítica do Scala setecentista, atrai
menos gente e tem sempre lugares de sobra nos espetáculos. Está portanto livre
dos "bagarini", cambistas que monopolizavam os ingressos e infernizavam os
espectadores na antiga e veneranda casa
de espetáculos. Sua acústica é muito boa,
embora fosse inverossímil supor que ela
chegasse às mesmas sutilezas mágicas da
do "verdadeiro" Scala. Duas apresentações raras se sucederam há pouco. Primeiro, "A Raposinha Esperta", de Janacek, dirigida por Andrew Davis, numa
produção da Welsh National Opera, que
sublinhou, de maneira comovente, o ciclo das estações do ano e a morte da raposa. Depois, a zarzuela "Luisa Fernanda", com elenco espanhol, estrelada por
Placido Domingo.
Herança - As zarzuelas formam um gênero característico da Espanha, onde a
música se alterna com o teatro falado, como na opereta. "Luisa Fernanda" foi
composta por Torroba, em 1932. Domingo assume nela não o papel do tenor,
mas o do barítono, em homenagem a seu
pai, ilustre intérprete desse personagem.
A mãe de Domingo também havia encarnado, em outros tempos, a protagonista. A trama é dilacerada e dolorosa:
Domingo, como de hábito, impôs as
qualidades de sua voz e sua formidável
intensidade cênica.
Outono - Entrar no museu Bagatti Valsecchi, em Milão, é como ler uma página
de Proust. Dois irmãos, Fausto e Giuseppe Bagatti Valsecchi, eram aristocratas
milaneses riquíssimos. Nos anos de 1880,
reformaram o antigo palácio que possuíam, próximo à Via Montenapoleone:
hoje, ele se avizinha, de modo coerente,
com as vitrinas Gucci, Prada, Boucheron, Valentino ou Dior. Reuniram quadros, esculturas, móveis, objetos, tecidos, tudo centrado no Renascimento, incorporando-os ao quotidiano da casa.
Completavam-nos com uma decoração
"neo", que parecia muito autêntica na
época e da qual emana, agora, um irresistível perfume fim-de-século.
Num quarto de dormir, na parede ao
lado da cama, pendura-se um Giovanni
Bellini, para um prazer confidencial. Na
sala de banhos, o chuveiro e a banheira
modernos, mas em "estilo do Quatrocentos", lembram os altares ou os túmulos murais em mármore que se poderiam encontrar nas igrejas florentinas.
Gerido por uma fundação cujo diretor
é um descendente da família, o museu foi
aberto ao público em 1994. Caso raro de
uma apresentação "não atualizada", nele
se percebe o passado pelo filtro do passado, obras autênticas e magníficas do Renascimento pelas lentes da sensibilidade
finissecular, que soube redescobri-las e
amá-las.
Escudo - Poldi Pezzoli foi outro colecionador milanês cuja casa também se tornou um museu, dentre os mais importantes da arte italiana. Ali se encontram a
"Lamentação", de Botticelli; o "Retrato
de Mulher", de Pollaiolo, que se tornou o
símbolo do museu; a "Laguna", de Guardi, um dos mais belos quadros do século
18; a "Fiducia in Dio", de Bartolini, mármore crucial do século 19. O escultor Arnaldo Pomodoro organizou, faz pouco
tempo, a sala de armas. Muito cerrados,
elmos, peitorais, lanças, armaduras completas acham-se como numa cripta, cuja
abóbada sustenta poderosas incrustações metálicas, inventadas pelo artista. A
empáfia guerreira e militar foi-se embora, deixando em seu lugar o esqueleto de
glórias irrisórias.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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