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+ sociedade
Entre as ameaças dos partidários de Saddam Hussein e os esforços de cooptação
do governo dos EUA, burocratas do antigo regime se sentem desnorteados
A difícil decisão de um iraquiano comum
Richard Rorty
especial para a Folha
Coloque-se no lugar de um burocrata iraquiano de médio escalão. Você poderia ser de grande
ajuda para as forças de ocupação
norte-americanas, que se deram conta
de que a cooperação irrestrita de pessoas
em postos como o seu é indispensável.
Você foi abordado por representantes de
Paul Bremer [chefe da Autoridade Provisória da Coalizão], que lhe ofereceram
incentivos.
Mas você também foi ameaçado por
supostos emissários de um movimento
bem organizado de resistência do partido Baath [do ex-ditador Saddam Hussein]. Eles o alertaram de que, a menos
que ajude a sabotar qualquer iniciativa
por parte das autoridades norte-americanas, você, sua mulher e seus filhos poderão sofrer graves consequências.
Essas pessoas garantem-lhe que, depois da partida dos americanos, a antiga
liderança voltará a tomar conta do país,
independentemente do que aconteça a
Saddam Hussein, e será impiedosa com
os colaboradores. Dizem-lhe que um
grande número de suicidas em potencial
já foi recrutado e que esses voluntários
explodirão dezenas de soldados americanos a cada semana. Não apenas isso,
dizem, mas também muitos mísseis de
lançamento foram contrabandeados
através da Síria. O uso desses mísseis garantirá que poucos helicópteros americanos levantem vôo. As tropas americanas serão, cedo ou tarde, expulsas das
ruas das cidades iraquianas. Portanto,
mesmo se os americanos ainda estiverem no Iraque daqui a um ano, eles estarão confinados em enclaves, impotentes
para afetar o rumo dos fatos.
Se você acreditar que os americanos
irão, de acordo com as palavras do presidente Bush, manter o controle da situação, você poderá encontrar a coragem
necessária para desconsiderar os alertas
sobre os perigos da colaboração. Mas, se
acreditar que o medo de Bush de ser derrotado nas eleições presidenciais de novembro de 2004 fará com que leve de volta para casa a maior parte das forças
americanas antes da criação de um regime democrático estável, você certamente obedecerá aos líderes da resistência.
Você gostaria muito de colaborar com
os americanos, porque espera algum dia
poder viver em um país livre e acredita
na sinceridade dos EUA em querer levar
as liberdades da democracia ao mundo
árabe. Mas você não se sente capaz de
prever qual será a atitude do governo
norte-americano. Assim, você coloca em
prática sua fluência em inglês, acessando
todas as fontes de informação disponíveis sobre política e opinião pública
americanas, na esperança de descobrir
como as forças de ocupação poderão
agir diante de diferentes contingências.
Previsão
O que o burocrata iraquiano que eu acabei de descrever encontraria em meio às tentativas de acumular informações suficientes para fazer uma
previsão confiável?
Ele ficaria sabendo que alguns dos líderes do Partido Democrata e um grande
número de democratas no Congresso
querem recusar a verba de bilhões de dólares necessária para apoiar a reconstrução do Iraque. Esses políticos compartilham da opinião dos estudantes de esquerda que fizeram manifestações nas
ruas no início da guerra e que agora
usam broches com os dizeres "tragam
nossos soldados para casa".
No entanto outros líderes democratas,
a maioria de esquerdistas mais velhos,
insistem que essa decisão seria desastrosa. Segundo eles, se o Iraque sucumbir ao
despotismo ou se o Baath algum dia voltar ao poder, os danos ao prestígio americano seriam tão grandes que impossibilitariam os EUA de ser um protagonista do cenário mundial. Eles são a favor de
permanecer pelo tempo necessário para
concretizar as promessas de Bush, apesar de acharem que a guerra foi um terrível engano.
O governo dos EUA está nas mãos de pessoas que estão percebendo que foram enganadas
e que suas previsões otimistas não têm chance de se realizar
Eles acreditam que toda a aventura iraquiana foi consequência do fato de Richard Perle [do Conselho de Políticas de
Defesa do Pentágono] e Richard Cheney
[vice-presidente dos EUA] terem sido ludibriados por um homem chamado
Chalubi, que de alguma forma conseguiu
convencer as pessoas mais influentes em
Washington de que, meses após a derrubada de Saddam, ele teria conseguido
unir o povo iraquiano em torno de si. Esses políticos continuam furiosos com a
credulidade do presidente Bush, mas
acreditam que os EUA devem conseguir
sair da enrascada em que se meteram.
Nosso iraquiano também ficaria sabendo que, do outro lado do espectro
político, todos os políticos republicanos,
assim como a cada vez mais poderosa
mídia de direita, ainda insistem em dizer
que a situação no Iraque é bastante condizente com os planos traçados, apesar
do grande número de soldados americanos mortos.
Eles continuam insistindo que a invasão do Iraque foi uma medida indispensável para a condução de um programa
vasto, idealista e heróico de levar a democracia a todo o Oriente Médio e a paz
ao mundo. Eles ainda depositam total
confiança em Perle, [Paul] Wolfowitz
[subsecretário da Defesa], [Donald]
Rumsfeld [secretário da Defesa] e Cheney e classificam imediatamente as críticas da esquerda como sendo antipatrióticas. Os republicanos ainda estão apostando na reeleição do presidente Bush
no ano que vem, graças aos eleitores que
acreditam que o fato de tirar do cargo
um presidente em tempos de guerra significa apunhalar pelas costas o comandante-chefe das forças do país e trair a
bandeira americana.
Nosso iraquiano ficará surpreso ao
descobrir que a grande maioria dos americanos ainda acredita que, apesar da total falta de provas, o Iraque serviu de base para as operações da Al Qaeda e que a
deposição de Saddam Hussein diminuiu
as chances de futuros ataques terroristas
(que outro motivo, devem pensar essas
pessoas, o presidente teria para fazer a
guerra?). Mas o iraquiano também descobrirá que as pesquisas mostram uma
acentuada queda nos índices de aprovação do presidente.
Essa queda reflete o fato de que as mesmas pessoas que ignorantemente acreditam que Saddam e Osama bin Laden estavam mancomunados ficaram nervosas
ao se dar conta de que os filhos e filhas de
seus vizinhos, que estão servindo no Iraque, são alvos fáceis e de que há grandes
chances de que ainda permaneçam lá,
sujeitos a imprevisíveis ataques de guerrilha, durante anos e anos.
O presidente Bush assumiria um grande risco político ao manter as tropas no
Iraque, pois isso significaria mais mortes
de americanos a cada semana, sem previsão de término do conflito. Enquanto
essas mortes continuarem, sem nenhuma previsão para o fim dos combates, as
críticas ao presidente aumentarão e se
tornarão cada vez mais difundidas.
Incertezas
Duvido de que o fato de
ler todas as revistas e jornais americanos
e escutar todas as transmissões televisivas americanas fosse de grande ajuda para resolver o dilema do iraquiano que
descrevi acima. Isso porque o próprio
presidente Bush não seria capaz de lhe
dizer por quanto tempo as tropas deverão permanecer no Iraque. Todo mundo
concorda em que Karl Rove (o conselheiro político do presidente) tem mais
influência na Casa Branca do que qualquer outra pessoa -até mesmo do que
Rumsfeld e Cheney.
Portanto, o presidente provavelmente
tomará suas decisões com base nas previsões de Rove sobre o que irá agradar
aos eleitores, em vez de levar em conta o
bem-estar do Iraque ou dos EUA. Mas,
no momento, ele ainda não sabe ao certo
qual estratégia poderá melhorar suas
chances de reeleição.
Se eu fosse consultado por um iraquiano tentando descobrir o que poderá
acontecer em seu país, eu poderia apenas
lhe dizer que o governo dos EUA está nas
mãos de pessoas que estão gradualmente
percebendo que foram enganadas e que
suas previsões otimistas não têm praticamente nenhuma chance de se realizar.
Eles estão pensando no preço político
que terão que pagar pelos seus erros. Poderão fazer qualquer coisa.
Richard Rorty é filósofo americano e professor na
Universidade Stanford. É autor de, entre outros,
"Para Realizar a América" (DP&A) e "Objetivismo,
Relativismo e Verdade" (Relume-Dumará).
Tradução de Leslie Benzakein.
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