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São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2003

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Administrar o Chelsea era como administrar uma floresta na qual pequenos incêndios teimavam em irromper a qualquer hora


"Voltem para cá! Aluguel gratuito! Tenho um apartamento maravilhoso para vocês!" Era Stanley Bard nos saudando, anos depois de termos deixado de viver no hotel. De ano em ano, mais ou menos, eu me via dando uma passada pelo hotel, quando estava nas redondezas, para bater um papo com ele e, confesso, para bebericar novamente um pouco do espírito do lugar. Mas só um pouco.
"Por que você não quer viver aqui?", ele exigia saber, com insistência cada vez maior à medida que os anos passavam. Agora ele já era um homem grisalho, de meia idade, seu pai já se fora havia muito tempo e seu filho começava a assumir o controle do Chelsea, ameaçando fazer uma faxina geral e até mesmo reformar partes do lugar.
"Porque eu gosto de surpresas, mas não no lugar onde moro", disse eu. "Como aquela vez em que aquela garota levou um tiro no sétimo andar..."
"Que garota?" Ele estava perplexo de verdade.
"A prostituta que perdeu um olho e um dedo, arrancados por balas."
"Nunca ouvi falar de tal coisa!", disse ele, realmente e profundamente ultrajado, mas ao mesmo tempo dando um sorriso vazio, como se não compreendesse a observação. Por que as pessoas continuavam a lhe contar histórias como essas! Administrar o Chelsea era como administrar uma floresta na qual pequenos incêndios teimavam em irromper a qualquer hora.
"Não faz mal", disse eu. "E o que mais tem acontecido ultimamente?"
"Nada. Está tudo tranquilo. E estamos lotados."
Estávamos sentados em seu escritório, cuja geografia é indescritivelmente complicada. Parte dele é um ambiente, e a outra parte é como se fosse outra sala, por trás de uma divisória de vidro que fica numa ponta do cômodo, mas não separa nada de nada. E não ousamos perguntar para que serve a divisória, temendo que a explicação oferecida não respondesse à pergunta e viesse apenas cansar a mente. A mobília era a McKinley de sua última fase, um tesouro de escrivaninhas descartadas de carvalho escuro, cadeiras de assento afundado, ventiladores elétricos velhos e pesados e gaveteiros de madeira. Por nenhum motivo, pensei no designer James.
"Você se lembra de James, como era mesmo o nome dele, o designer?"
"Claro que sim. Espere um minuto..." O telefone tocara. Encontrei uma edição velha do "New York Times" no chão e comecei a ler. Eu não me lembrava daquelas notícias; era como um jornal do futuro, falando de coisas que ainda não tinham acontecido. De repente, Stanley estava gritando ao telefone.
"Espere aí, Ethel... Não, espere, tenho uma coisa a dizer! Você não vai voltar para cá. Não me importo. Não vamos aceitar negócios como esses aqui, e você sabe do que estou falando..."
Uma jovem vestida com grande beleza entrou no escritório.
"Stanley..."
"Por favor, cale a boca um instante, querida", disse ele à recém-chegada, que ergueu a cabeça, indignada, e bateu o pé, com um punho apertado contra seu quadril.
"Você ouviu o que eu disse, Ethel", Stanley continuou ao telefone. "De uma vez por todas, não quero você aqui nunca mais, querida!". E desligou.
"Cadê meu dinheiro?", indagou a moça bonita.
"Ouça aqui, Bernice, não sou seu pai. Não tenho dinheiro nenhum para você até o primeiro dia do mês."
"O primeiro do mês!" Bernice, usando US$ 3.000 em terninho bege, botas combinando e uma enorme boina branca, tinha um rosto rico e angelical com olhos verdes assustadores que, no momento, assinalavam sua vontade de matar alguém.
"O que você quer que eu faça? Só tenho uma nota de US$ 20!" Agora sua voz continha o tom choroso de uma menininha.
"O primeiro dia do mês, Bernice, é só isso que posso lhe dizer. Não tenho dinheiro para você antes disso. Agora por favor me deixe a sós."
Bernice já estava chorando.
"Não estou ouvindo", disse Stanley e então se voltou para mim. "Você está falando de James?", perguntou. "James morreu dois anos atrás."
Bernice continuava lá, em pé, chorando dentro de um lenço bordado.
"No final, virou um homem patético", disse eu, ignorando Bernice, assim como Stanley estava fazendo, intuindo que a angústia dela, embora real, fosse algo que se repetisse a cada poucas semanas. "Ele costumava reclamar do jeito que você o tratava."
"Como eu o tratava? Por quê? Como eu o tratava?" E de repente Stanley se lembrou de alguma coisa. "Espere aí! Tenho uma carta linda dele." Virou sua cadeira de rodinhas em direção ao arquivo do Chelsea, uma pilha de papéis amarelados que se erguia a pelo menos 1,20 m acima do tampo de sua mesa. "Está aqui mesmo em algum lugar..." Ele olhou para as centenas de folhas de papel à sua frente, ergueu a mão e, com o polegar e o dedo indicador, retirou delicadamente uma folha, olhou para ela e a entregou a mim. "Aqui está. Leia você mesmo."
Ainda impressionado com seu sistema de localização instantânea de documentos, muito mais veloz do que qualquer sistema computadorizado, peguei o documento, uma carta escrita à mão, enquanto o telefone de Stanley tocava novamente. Enquanto isso, Bernice saíra para o saguão para chorar mais alto. O telefone continuou a tocar enquanto ele me explicava sobre ela. "A família dela está muito bem de vida, mas ela usa drogas, então só querem que eu dê dinheiro a ela no primeiro dia de cada mês."
"Você é responsável por ela?"
"Não responsável, apenas..." Ele deu de ombros diante de mais uma pergunta irrespondível do Chelsea, incerto de qual era sua função, sabendo apenas que não tinha como fugir dela. Pegou o telefone e, enquanto eu lia a carta, começou a berrar: "Ethel, você já está me incomodando!". E voltou a desligar, seu rosto benévolo nem pálido nem corado por um sentimento que só pode ter sido raiva. A carta do finado James era uma crítica frontal a Stanley por ele ter pedido um aumento no aluguel, mesmo sabendo que James já não conseguia ganhar muito e, pelo jeito da carta, talvez sobrevivesse com a ajuda da seguridade social. James misturava ultraje com imploração patética: "Você está me destruindo!", e assim por diante.
O telefone tocou mais uma vez, e Stanley atendeu, mas em seguida bateu o telefone. "Não suporto mulheres malucas", ele disse. E, apontando para a carta com um sorriso benévolo no rosto, disse: "Você viu?".
"Você leu esta carta, Stanley?"
Seu rosto se anuviou. "É claro que li. Ele adorava este lugar. Tinha morado aqui anos e anos. Dizia que era o melhor hotel do mundo."
"Ele diz que você o estava destruindo."
Pegando a carta de volta, Stanley falou: "Destruindo-o!". Evidentemente estava começando a recordar-se da carta. "Mas veja o que ele diz aqui embaixo."
Ele segurou a carta diante de meus olhos, apontando para o canto inferior, e leu: ""Muito sinceramente". Está vendo?". E recolocou a carta em seu lugar, seu argumento concluído. Recostou-se na cadeira e sorriu seu sorriso antigo, amistoso. "James adorava este lugar. Então escute, estou falando a sério. Eu lhe darei o apartamento sem aluguel nenhum se você vier morar aqui. Pelo menos olhe o apartamento."
"Eu não poderia voltar a viver aqui nem que tivesse que pagar aluguel", falei, mas ele não entendeu a brincadeira. Só Deus sabe por quê, mas pouco tempo depois me vi com ele num dos dois elevadores que estavam funcionando naquele dia, e subimos para o sétimo andar, onde pintores trabalhavam num apartamento grande, de pé direito alto.
"Toda a mobília é nova, até as torneiras do banheiro..." Lá estava eu novamente, mais de 20 anos depois da primeira demonstração à qual assistira na companhia do pai de Stanley, já morto, sendo convidado a examinar as torneiras do banheiro. Será que aquele clã continuaria para sempre reproduzindo-se e repetindo as mesmas coisas? Dentro de cem anos, será que outro Bard estaria mostrando as torneiras novas em folha a algum possível novo inquilino? Deprimido com essas reflexões e suas intimações de mortalidade, fui obrigado, não obstante, a reconhecer que o apartamento era, de fato, muito bonito, embora a porta da geladeira já tivesse perdido seu revestimento de porcelana -mas eu sabia que sempre teria que haver algum resquício de algo usado, de segunda mão, para que o Chelsea não corresse o risco de se transformar num hotel de verdade, no qual ninguém estaria especialmente interessado em viver. "E ouça só o silêncio", disse Stanley, erguendo uma mão como se estivesse regendo a orquestra do silêncio. "É um apartamento fantástico, mas..." "Pense sobre isso, é tudo o que lhe peço. Alguma vez você ouviu silêncio como esse em Nova York? Você está em Nova York, dá para acreditar?"


Fiquei olhando para a rua onde, na última primavera antes de Kennedy ser assassinado, eu tinha conseguido trancar as chaves de meu Buick dentro do porta-malas do carro


Tive que confessar que era, de fato, muito silencioso, sabendo, como eu sabia, que as paredes antigas tinham uns 60 cm de espessura. Descemos para o saguão e, quando saímos do elevador, Stanley continuou com o tema da paz e do silêncio: "Você poderia se concentrar aqui, ninguém viria lhe incomodar...". Meu olhar registrou a cena incomum de uma pilha alta de vidro quebrado ao lado da porta que dava para a rua. Atravessando o saguão, nós dois nos demos conta de que as portas de vidro tinham quebrado, desmoronando e formando aquela pilha a nossos pés. Com sua expressão budista intacta, com a exceção de um aperto de pânico em torno dos olhos, Stanley chamou o recepcionista, que imediatamente se aproximou. "Não sei o que aconteceu", disse o recepcionista. Não pude saber ao certo se ele ainda estava em choque ou se sua aparência normal era pálida, com expressão surpresa. "Como assim, você não sabe o que aconteceu, se a porta veio abaixo!" "Um homem parou na calçada, tirou uma arma e atirou contra as duas metades da porta." "Como assim, atirou contra ela? Ele atirou na porta?" "Atirou contra a porta, e ela desmoronou." "Por que ele atiraria na porta, pelo amor de Deus?" Stanley firmou sua voz e adotou um tom quase acusador. "Como vou saber? Eu o vi atravessando para esta calçada, então ele parou, tirou uma arma do bolso e bang! E então foi embora." Momentaneamente sem saber o que fazer, Stanley ficou ali, fazendo um gesto de "não" com a cabeça. Era mais um dilema irrespondível do Chelsea, que ia além do alcance analítico de qualquer cabeça. Na calçada, do lado de fora, um casal cego chegara e, com suas bengalas, os dois procuravam um caminho para desviar-se do vidro quebrado que bloqueava a entrada. Stanley pisou sobre o vidro e, pegando o braço da mulher, a conduziu com gentileza em volta da pilha, com o homem atrás, dizendo a eles que não deveriam se preocupar e que estava tudo sob controle. Sozinhos novamente em seu escritório, eu disse a ele: "É isso o que eu quero dizer, Stanley. Viver aqui é interessante demais. Eu nunca conseguiria trabalhar". "Mas você sempre ficava em seu quarto, não frequentava o saguão... Nada vai lhe acontecer em seu quarto. Você pensa no assunto?" "Não farei mais nada nos próximos três meses." Dessa vez ele entendeu a brincadeira e riu, se bem que sem alegria. Suas mudanças rápidas de humor me lembraram da atração que ele exercia sobre muitas pessoas. Ele era um homem de sentimento, um homem apaixonado. Além de algumas outras características -mas, afinal, negócios são negócios. Um grão de poeira caiu em meu olho. Torci para não ser vidro e, mexendo meu cílio com cuidado, inclinei a cabeça para trás -e, perto do telhado, vi com meu olho bom um ladrilho de linóleo branco com rabiscos vermelhos e azuis pintados sobre ele. Mendel, o Marine! "O que aconteceu com Mendel, o Marine?", perguntei. Dois policiais imensos entraram, sem dúvida para falar sobre os tiros disparados contra a porta de vidro, e deixei Stanley extremamente nervoso, obviamente preocupado com a provável publicidade injusta. O ódio que Mendel sentia pelo detetive da casa, muito tempo atrás, nos anos 60, voltou à minha memória enquanto fiquei no saguão, aguardando para que dois funcionários retirassem o vidro. Bernice estava sentada ali perto, indiferente ao que a cercava, debaixo de uma tela de Larry Rivers, fazendo palavras cruzadas. Fiquei olhando para a rua onde, na última primavera antes de Kennedy ser assassinado, eu tinha conseguido trancar as chaves de meu Buick dentro do porta-malas do carro. O recepcionista sugerira que eu telefonasse para o detetive da casa, que, disse ele, tinha muitas chaves. Ele o disse com um sorrisinho, divertindo-se com algo que só ele sabia e que, naquele momento, não tive tempo nem presença de espírito para tentar decifrar.

Hábito de trancar arraigado
Às 8h30 de um domingo, a voz do detetive, grogue de sono, soava controlada, porém furiosa. Pedindo desculpas, expliquei a ele meu problema e ele disse que estaria lá embaixo em meia hora, mais ou menos, "se você quiser esperar". Como se eu pudesse fazer qualquer outra coisa, com a chave da ignição dentro do porta-malas do carro. Eu já vira o sujeito uma vez, um ano antes, quando, enquanto esperava para atravessar a rua 23, observara um Saab com o teto tão amassado que parecia que um poste telefônico tinha caído sobre ele. O pára-brisas estava separado do restante do carro, deixando um buraco pelo qual neve caía sobre o boné do motorista. O visor do boné tinha mais ou menos uma polegada de neve em cima. Chegando ao hotel, vi o motorista -que, mais tarde, descobri ser o detetive- descarregando coisas do porta-malas. Um vidro lateral do carro estava faltando, o que não o impediu de trancar o veículo cuidadosamente. Lembro que pensei, na época, que devia ser um homem com hábito de trancar profundamente arraigado. Isso aconteceu no inverno.


Sozinhos novamente em seu escritório, eu disse a ele: "É isso o que eu quero dizer, Stanley, viver aqui é interessante demais; eu nunca conseguiria trabalhar"


Agora, naquela bela manhã de primavera, ele finalmente desceu, em mangas de camisa, carregando um anel de aço do diâmetro de um Frisbee no qual estavam penduradas mais ou menos cem chaves. Enquanto ele experimentava uma após a outra, eu o observava mais e mais desanimado, ciente de que eram chaves de casa e, portanto, jamais abririam uma fechadura de carro. Resolvemos o problema removendo a parte de trás do banco traseiro, de modo que eu pudesse entrar pelo porta-malas. Ele tinha cerca de 30 anos e era um homem loiro e bem-feito, com cabelo cortado rente à cabeça, em estilo militar, e um rosto do qual não saía nem um sorriso sequer, nem mesmo depois de eu lhe dar US$ 10 pelo incômodo que tivera. Pareceu-me estranho, à época, que um detetive não soubesse que chaves de casa não são iguais a chaves de ignição, mas o fato era que, no Chelsea, o desejo de ir até a raiz dos fatos rapidamente se esgotava em perguntas sem respostas que iam correndo e sumindo como um riacho no deserto.
Na verdade, na manhã depois que o famoso rolo de tapete novo foi entregue e levado até o segundo andar para aguardar os colocadores, saí do elevador e encontrei três ou quatro policiais no saguão, mas eles não estavam segurando recipientes de café. Em vez disso, pareciam estar trabalhando, conversando entre eles em voz baixa.


De repente lembrei que o detetive da casa tinha subido a escada, saindo do saguão, em lugar de usar o elevador, após minha aventura com a chave do carro


Aconselhado por meu pai, aos 7 anos, a sempre manter distância de multidões, parti, voltando naquela tarde para descobrir que Mendel, o Marine, tinha vendido um ladrilho a uma mulher de sotaque estrangeiro, possivelmente do Alabama. Mendel me alcançou quando eu esperava um dos elevadores que funcionavam.
"Você ouviu?"
"O quê?"
"Roubaram o tapete."
"Aquele rolo de tapete de 200 ou 300 quilos desaparecera? Da noite para o dia? Se tivesse passado pelo saguão, com certeza o recepcionista do balcão o teria visto saindo. E se ele tivesse participado do roubo? Não -impossível. Ele mal tinha 1,60 metro de altura, era magérrimo e vivia exausto. Como, então, um objeto tão maciço e tão pesado poderia ter deixado o prédio? Retirar um objeto daquele tamanho e peso era mais ou menos o equivalente a roubar um piano de cauda e levá-lo para a rua sem que ninguém percebesse.
"Ah, pode ser feito", disse Mendel.
"Como?"
Olhando à esquerda e à direita para evitar possíveis intrusos, ele me fez um sinal com a cabeça para que o seguisse até um dos elevadores, o que estava funcionando.
No corredor do segundo andar, Mendel indicou uma janela enorme, com mais de três metros de altura e cerca de dois metros de largura, que dava para o estacionamento escuro que ficava nos fundos do hotel. "Essa janela pode ser retirada, com esquadria e tudo", explicou. "Bastaria manobrar um caminhão até ali e deixar o rolo cair sobre ele."
"Mas será que alguém não teria ouvido? Na verdade..." De repente lembrei que o detetive da casa tinha subido a escada, saindo do saguão, em lugar de usar o elevador, após minha aventura com a chave do carro.
"Imaginei que ele vivesse num dos andares de baixo." Com o rosto cuidadosamente inexpressivo, Mendel ergueu um dedo e apontou para uma porta que ostentava meia dúzia de trancas, logo diante da janela grande. "O detetive da casa mora bem aqui." "Ah", falei. "Ah, mesmo." "Talvez ele não estivesse em casa na hora do roubo." "Tem razão, talvez não estivesse. E talvez hoje não seja terça-feira."


Apesar de todas as dúvidas que o Chelsea me inspira, nunca consigo entrar no hotel sem sentir meu coração bater um pouco mais forte; há um ambiente caseiro, mas ao qual, ao mesmo tempo, falta uma certa credibilidade


Desaparecimentos
Nas semanas seguintes, o drama principal do Chelsea tinha sido o desaparecimento lento e constante, de vários apartamentos, de máquinas de escrever, rádios, aparelhos de ar condicionado, televisores e até mesmo algumas jóias. A polícia viera e se fora, sem encontrar nenhuma pista. Uma manhã, fumaça começou a jorrar de um quarto situado ao lado daquele do detetive da casa.
O departamento de bombeiros apagou o incêndio em poucos minutos e, seguindo os procedimentos de rotina, pediu a Stanley a chave do quarto adjacente àquele que pegara fogo, que, por acaso, era o do detetive, para verificar se não havia nada fumegando lá dentro. É claro que Stanley não tinha as chaves dos seis cadeados que trancavam a porta do detetive, e ele próprio não estava no hotel. Ignorando os protestos de Stanley, os bombeiros arrombaram a porta e entraram no apartamento.
Ali, diante deles, havia prateleiras que se elevavam até o teto, repletas de um boa seleção de rádios, máquinas de escrever, televisores, casacos de pele e outros artigos úteis. A polícia aguardava o detetive quando ele voltou para casa, e ele recebeu uma condenação mediana, ao que consta, porque não manifestou violência nenhuma. Daquele momento em diante até o dia em que desapareceu, Mendel, o Marine, era só sorrisos quando nos esbarrávamos. Acredito que tenha sido um homem feliz pelo resto de sua vida.
Apesar de todas as dúvidas que o Chelsea me inspira, nunca consigo entrar no hotel sem sentir meu coração bater um pouco mais forte. Há um ambiente indescritivelmente caseiro, mas ao qual, ao mesmo tempo, falta uma certa credibilidade. É como algum lugar fictício, eu costumava pensar. Como em sonhos, coisas que são escondidas em outros hotéis lá acontecem ou aparecem abertamente, como os recipientes de madeira nos corredores dentro dos quais são guardadas as latas de lixo, e, por alguma razão indecifrável, essa espécie de candura parece ser tão correta que você sorri a cada vez que passa diante dos recipientes. Pode ser simplesmente que ninguém esteja urgentemente preocupado com o que está acontecendo, já que ninguém sabe ao certo o que está acontecendo, ou talvez exista uma espécie de liberdade ou de desconexão grave com a realidade pura e simples, ou mesmo, como diz o ditado, um senso de que os internados já tomaram conta do hospício há muito tempo, o que pode ser irritante, mas não é de todo mau, pelo menos no sentido espiritual.
Talvez essa seja, de fato, uma forma tão salutar quanto qualquer outra de administrar um local público. Nos últimos anos e meses, porém, uma nova determinação de modernizar vem se manifestando. O filho de Stanley já atingiu a maioridade e há um tapete novo, lambris foram revelados, depois de retiradas incontáveis mãos de pintura. A fachada inteira passou por uma limpeza e foi restaurada a sua elegância vitoriana, havia muito tempo esquecida. Numa visita recente que fiz ao Chelsea para ver Arnold Weinstein, com quem venho colaborando para escrever o libreto de uma nova ópera baseada em "A View from the Bridge", me vi mergulhando novamente, psicologicamente falando, nos meus sentimentos calorosos originais em relação ao hotel.
E, enquanto discutíamos assuntos de trabalho no caos de sua sala de estar, que não é tanto mobiliada quanto repleta de artigos de colecionador apropriados para fazer uma doação maciça ao Exército da Salvação, a porta para o corredor se abriu sem que ninguém batesse primeiro e uma empregada forte entrou, seu sorriso exuberante e sua brilhante pele negra reluzindo com uma espécie de triunfo. Erguendo para o alto quatro rolos de papel higiênico, dois na ponta dos dedos de cada mão, ela falou bem alto, com sua alegre voz de contralto: "Não me esqueci de você, Arnold!". Ele ergueu-se da cadeira trêmula e, agradecido, aceitou o presente da moça. Assim eu soube, imediatamente, que, fachada limpa ou não, com ou sem saguão reformado, eu estava no Chelsea outra vez, sem dúvida alguma.

Este texto é uma versão reduzida de artigo publicado na revista britânica "Granta".
Tradução de Clara Allain.


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