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PONTO DE FUGA
Correntezas escuras
Jorge Coli
especial para a Folha
"Mystic River" é um título mais poético do que "Sobre
Meninos e Lobos". Nome de um rio que existe de fato,
sugere transcendência e mistérios metafísicos: talvez seja mais adequado e necessário para o filme do que para
o livro. O roteiro, seguido por Clint Eastwood, mantém-se fiel à história contada por Dennis Lehane em seu romance [publicado no Brasil pela Companhia das Letras]. Há entre eles uma diferença profunda, no entanto,
que se exaspera para além do fio narrativo, e cuja comparação faz sobressair a natureza de cada um.
"Mystic River", o livro, está ancorado num lugar preciso, bem caracterizado, um subúrbio pobre, mas não
miserável, de Boston. É um romance realista, no sentido
em que são realistas as obras de Balzac. Cenários bem
descritos, numerosos objetos que participam do cotidiano, tudo impõe força visual. Um velho ferro elétrico
em pleno uso e ótima forma acusa a fragilidade dos produtos contemporâneos, causada pela lógica do consumo; o frango deixado na geladeira pela mãe que vai ao
bingo, quando o filho, suspeito de homicídio, volta da
delegacia, pode ser sinal de solidão e desamparo.
Personagens brotam de genealogias bem traçadas e
fundem-se ao meio; suas individualidades complexas
participam de um tecido coletivo. Há acaso e fatalidade,
mas que seguem juntos como agentes complementares
de um determinismo social. As angústias são provocadas por tudo isso e vazadas em verdadeira substância literária, sem procedimento esquemático nem espírito
de sistema. Atingem a universalização humana de dramas e problemas navegando sempre por águas de cores
norte-americanas. O filme é outra coisa.
Naufrágio - Clint Eastwood retomou, sempre, a questão ética do dever, da justiça, do certo, do errado. Em
tom menor, seus filmes fazem também voltar o tema
dos sentimentos amorosos, por vezes acoplados ao
princípio implacável da escolha justa que impõe sacrifícios: é assim em "As Pontes de Madison".
Algumas produções mais recentes trouxeram relações secretas, íntimas, entre vítima e assassino, ligados
por vasos comunicantes invisíveis e mágicos, bem perceptíveis em "À Meia-Noite no Jardim do Bem e do
Mal", em "Dívida de Sangue". Mas, nesses dois casos,
há um destino que, de algum modo, se cumpre e indica
sentido aos acontecimentos.
"Mystic River" rompe com a ética e com o dever, com
o justiceiro capaz de restabelecer a ordem no mundo,
com a intensidade amorosa portadora de beleza, para
instaurar uma abominável crise nas convicções que
Clint Eastwood até agora demonstrou. Seu filme não se
interessa por realismos: expõe personagens, situações,
imagens, de força emblemática. O meio está ali, as personalidades também, mas eles se tornam secundários e
discretos, irrelevantes diante de um labirinto frio e uma
angústia maior. A crença enérgica em valores positivos,
na ação corretora, é desmentida pela natureza infame
das relações humanas. As vítimas são perdedores; os
mortos não têm razão; os vivos podem carregar remorsos tremendos, mas as consciências terminam por se
acomodar numa ordem em que a ética cede ao compromisso. Ai dos vencidos.
Proa - Não há cinismo nenhum em "Mystic River". O
filme tem a espessura repulsiva e angustiante de águas
turvas. A fala consoladora da mulher de Jimmy, transformando o assassino em rei soberbo, é o ponto culminante da infâmia recobrindo qualquer possibilidade
moral. No fim, dois dedos imitam um revólver atirando, simulacro impotente de armas que, no Velho Oeste
e ainda em "Os Imperdoáveis", eram agentes da convicção ética.
Leme - Clint Eastwood, em "Mystic River", simplifica
personagens e o mundo em que vivem. Nisso, distancia-se do realismo presente no livro. Inventa uma poesia visual sombria, portadora de meditações sem saída.
Os atores excepcionais que emprega, sobretudo os protagonistas (Sean Penn, Tim Robbins e Kevin Bacon),
não buscam uma qualquer "naturalidade", mas uma
tensão trágica, no limite do "overacting". Fazem lembrar animais se debatendo ou monstros desesperados.
É apavorante o rosto de Tim Robbins diante da morte,
em meio à escuridão.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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