São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004 |
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O DISCURSO SOBRE O MÉTODO
UM DOS PRINCIPAIS
DIRETORES DA HISTÓRIA DO
TEATRO BRASILEIRO,
ANTUNES FILHO EXPLICA
E MOSTRA SEU PROCESSO
DE CRIAÇÃO, DIZ QUE SUA
"ANTÍGONA", QUE ESTRÉIA
EM 2005, SERÁ MAIS
"VISTOSA" E "AUTORAL",
FALA TAMBÉM DO
FUTURO DE SEU CENTRO
DE PESQUISAS E AFIRMA
NÃO TEMER A MORTE
Minha motivação é hoje a mesma de sempre.
Fazer teatro é a razão da minha vida." Assim
Antunes Filho, 74, avalia o sentimento com
que segue conduzindo o dia-a-dia de atividades do CPT (Centro de Pesquisa Teatral), no sétimo andar
do Sesc Consolação, em São Paulo.
Num momento de bronca, ele repreende, em público, uma das atrizes por algum comportamento no dia anterior. Começa um rápido bate-boca, que mais tarde cede lugar aos sorrisos recíprocos. "É preciso enxotar o diabo quando ele quer entrar", diz, ao metaforizar seu hábito de não deixar nenhuma roupa suja sem lavar. Melhor falar tudo, mesmo que seja incômodo. Isso porque o recalcado, a "sombra", sempre volta e poderia prejudicar a coesão e o trabalho do grupo. Nem só quando instrui o elenco Antunes deixa ver aspectos de sua personalidade artística. Também o fez nas duas sessões de entrevista que nos concedeu. As conversas giraram em torno, principalmente, do livro "Prêt-à-Porter 1,2,3,4,5...". "Nova teatralidade" O "Prêt-à-Porter" apresenta, desde a estréia, em 1997, uma série de "movimentos" -em geral três cenas a cada edição-, com duração de 15 a 20 minutos, em que uma dupla de atores contracena sob condições de grande simplicidade de cenografia, figurinos, luz e som. A idéia era fazer do "PP", como o projeto é chamado internamente, a base de uma "nova teatralidade". Pela queima dos estereótipos cênicos, o intérprete pretende alcançar soberania sobre o próprio corpo, voz e imaginação -inclusive imaginação dramatúrgica, pois os atores se encarregam também da elaboração dos textos que vão encenar. Antunes chega até a abrir mão do posto de diretor dessas cenas, preferindo o de coordenador. Ele diz que, pelo que vê nos testes anuais de acesso ao CPT, o nível dos aspirantes a ator no Brasil tem melhorado bastante. Menos gritaria, menos impostação de voz, menos "mãozinha de garçom". Esse avanço geral, diz sem falta modéstia, pode em parte ser creditado aos esforços de seu grupo. E comenta que "o "Prêt-à-Porter" tem que ser sempre um falso naturalismo, para ser um realismo psíquico. Parece uma contradição. Para ter um vórtice espiritual muito grande, preciso fingir o realismo. Se eu fizer o realismo, eu fico empenhado no real e perco aquilo que nós poderíamos chamar de "atos simbólicos'". Para explicar esse princípio dramatúrgico, que ele considera análogo ao da corrente simbolista de fins do século 19, o diretor troca a roupagem de "entrevistado" por aquela de que mais gosta, a de homem de ação. Pede que o repórter desligue o gravador e o acompanhe ao espaço de ensaios do grupo, onde há, no chão, uma inscrição de giz: uma linha horizontal cortada por três linhas verticais. A primeira representa o transcorrer do que Antunes chama de "tempo profano". É nesse nível que estariam a causalidade, a ação externa, o conflito objetivo, enfim os componentes do conceito tradicional de drama. Mas as linhas verticais, marcando os eventos que vão se sucedendo, abrem também intervalos entre os fatos externos, brechas que o diretor chama de "vida vivida". São espaços que deitariam raiz no universo subjetivo das personagens, por mais simples, precárias que elas sejam. A galeria do "Prêt-à-Porter" inclui, ao longo desses anos, figuras como prostitutas, funcionários de cartório e uma anciã que já não fala, não anda e está confinada em um asilo. A riqueza de cada ser humano "Nessa trama em vertical, você chega ao mistério, à riqueza íntima de cada ser humano", diz Antunes, no que concretiza um princípio narrativo de que também Jung, um de seus mestres, lança mão na célebre autobiografia "Memórias, Sonhos, Reflexões": "Em última análise", diz ali Jung, "só me parecem dignos de ser narrados os acontecimentos da minha vida em que o mundo eterno irrompeu no mundo efêmero (...). Mesmo aquilo que em minha juventude, ou mais tarde, veio do exterior, ganhou importância, estava colocado sob o signo da vivência interior". Trata-se aqui, não de causalidade, mas de sincronicidade (uma "coincidência" significativa) entre o externo e o interno. O diretor revela, em outro momento da entrevista, como seu modo de trabalhar não se separa nunca de seu modo de ser. Talvez aqui esteja um dos segredos do seu entusiasmo com a labuta de cada dia. Stanislávski queria um método de atuação que traduzisse aos aprendizes menos dotados aquilo que, nos atores geniais, vem pelo talento inato. Antunes dá um passo a mais: seu método é também uma forma de traduzir vivências íntimas dele, pessoais. Ou melhor, transpessoais. "Eu já cheguei lá, faltam eles [os atores] chegarem lá." O "lá" em questão seriam os "estados alterados de consciência", estudados por um dos autores que mais lhe interessam atualmente, Stanislav Grof , um dos fundadores da psicologia transpessoal e autor de livros como "Psicologia do Futuro" e "A Mente Holotrópica" (ed. Rocco). O diretor enfatiza que essa, mais que uma utopia intelectual distante, é para ele uma vivência razoavelmente familiar. "Eu sou capaz de estar aqui conversando com você e, de repente, "tchau", por meio da respiração eu vou embora, não é que eu pire, eu fico mais íntegro, eu vejo todos os tempos e espaços, fora do tempo e do espaço. Na época de "Macunaíma", havia muita repressão, e todo mundo ficava de índio em cena, todo mundo pelado pelo teatro todo, de repente, numa apresentação no Teatro de São Pedro, uma porção de coisas começou a "cair" dentro de mim, sem querer. E eu precisei ir para a Itália com meu filho, mas durante a viagem eu continuei nesse estado alterado de consciência, eu via as coisas de uma outra maneira, de vez em quando me dá esse estado alterado." A conversa então toma rumos que inspiram uma pergunta que a madrinha do filho de Antunes, a escritora Clarice Lispector, faz a Hélio Pellegrino, numa das entrevistas por ela conduzidas e depois reunidas em "De Corpo Inteiro" (ed. Siciliano): "Antunes, viver é bom?". Depois de uma pausa de alguns segundos, ele responde: "É um privilégio, é isso, um privilégio. Quatro coisas são fundamentais para mim, a vida, a saúde, a alegria, e a beleza, não a externa, a interna, espiritual. São meus quatro mandamentos, a isso agradeço sempre". O que vem depois do banquete E a morte, assusta? "Me assustava, não me assusta mais, não. Mas, de qualquer maneira, a morte tem um sentido muito chato, é que você vai se despedir de tantas coisas, a gente fica amarrado a certas coisas, pessoas, então a morte é ruim no sentido da saudade, que pena, né, não estar mais com aquela pessoa, que pena não conhecer mais aquilo, então é uma despedida. É como quando você está no cais e as pessoas, com lencinho. Nesse sentido tem uma certa melancolia, mas não esqueça de que você está num transatlântico. Como é que os epicuristas diziam? "Pô, está se queixando porque está morrendo, mas você passou por um puta banquete, e se queixa?". É muito engraçado isso, né? [risos] Não sei que apóstolo foi se queixar para Cristo: "Pô, isso aqui está me doendo, será que você não pode me ajudar?". E Cristo: "Como? A minha graça, você quer mais ajuda, já tem minha graça", acabou." Antunes diz acreditar que o CPT sobreviverá a ele, quando for a vez de se despedir. "Eu acho que tem aqui um pessoal que pode agüentar a barra. Porque a história do CPT até o ano 2000 é uma, depois é outra, eu [desde então] aprofundei o método, precisei o método, coisas que pareciam intocáveis, "indizíveis", "inefáveis", hoje em dia dá para falar. "Isto é isto, a soma disto com isto dá isto" é palpável, é tangível, antes era intuição. Hoje eu uso a intuição para outras coisas, não para isso." Ele descarta, por ora, qualquer possibilidade de fazer uma autobiografia ou um livro de memórias. Um livro desses só serviria, exagera, para alguém, numa noite de inverno, usar as folhas para reforçar o fogo da lareira de casa. Antunes quer o mito em seu teatro, e não o fetichismo em torno de si mesmo. Quer explorar o imaginário, e não ser presa da fantasia ou da reputação fantasiosa. "Você acha que eu vou fazer uma vida para ter um nome no teatro ou para não sei o quê? Ah, tem dó! A vida tem que ser vivida plena, viva! E a vida é trânsito, é caminhar, caminhar, não tem aonde chegar, vamos em frente." Texto Anterior: + autores: As novas razões da mentira Próximo Texto: Os arquétipos de um Beatnik Índice |
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