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+ brasil 505 d.C.
Apesar de sua origem aristocrática,
Getúlio Vargas foi o primeiro presidente
a utilizar a importância crescente
dos trabalhadores urbanos
como trunfo na luta política
Carisma instrumental
Boris Fausto
Ao final de uma palestra que fiz em
Porto Alegre, a propósito dos 50
anos da morte de Getúlio [em 24/
08/1954], aproximou-se de mim
uma jovem senhora de aspecto enérgico
que, entre séria e irônica, me provocou:
"Eu não gostei da sua aproximação entre
Getúlio e Lula". Ingenuamente, devolvi a
observação, perguntando se ela não ficara
satisfeita por ser petista ou por ser getulista. Aí, a jovem senhora foi mais enfática:
"Ora, professor, eu sou gaúcha, como
comparar dr. Getúlio com Lula?".
O curioso é que, na comparação, eu tratara de estabelecer o contraste entre dois
carismas, mas ela estava pouco interessada
em ouvir minha justificação. Queria, sim,
expressar seu entusiasmo pelo antigo líder
e acabou exemplificando, se preciso fosse,
a força de um carisma que resiste ao passar
dos anos.
Foi Bolivar Lamounier quem primeiro
observou que, ao assumir o poder em outubro de 1930, Getúlio inaugurou as presidências carismáticas. Até então, os dirigentes do país prescindiam desse traço,
não porque fossem necessariamente destituídos dele, mas porque, naquele tempo,
qualidades carismáticas eram prescindíveis para conferir legitimidade política.
Como se sabe, no sistema da República
Velha, as candidaturas nasciam de um
"clube de notáveis"; as campanhas eram
quase sempre mera formalidade -Rui
Barbosa, como opositor, foi uma exceção- e, para manterem-se no poder, os
presidentes dependiam do apoio das elites,
e não de uma rala massa popular.
Getúlio utilizou o recurso do carisma
não só por ter qualidades pessoais para
tanto, mas principalmente por ter vivido
numa nova época, como soube perceber.
Época em que os trabalhadores urbanos
-não redutíveis apenas à classe operária- começavam a ser um trunfo na luta
política para quem fosse capaz de obter
seu apoio, com um mínimo de mobilização. Depois dele, nenhum presidente prescindiu do carisma, se descontarmos os do
regime militar -presidentes em sentido
impróprio- , que se legitimaram pelos
êxitos econômicos, enquanto existiram, e
se impuseram pela coerção. A exceção, entre os eleitos, foi o general Dutra, não por
acaso também um militar, o que não quer
dizer que militares sejam necessariamente
destituídos de carisma.
Retomo a figura da jovem senhora de
Porto Alegre e, com ela, o conceito weberiano de carisma. Ao comparar Getúlio e
Lula, eu pretendia reforçar a noção de que
o carisma é um dom de liderança, reconhecido pelos seguidores do líder, mas cujo conteúdo pode variar e até contrastar
sensivelmente, por uma série de razões.
Lula e Getúlio
O carisma de Lula tem
como principal alicerce a origem popular,
ressaltada menos pelo discurso e mais por
sua aparência física e por seu estilo. A simplicidade, estudada ou não, que o leva a dizer coisas que na boca de outro presidente
seriam um desastre, aproxima-o da massa
popular e até mesmo de um setor de elite
que alivia assim, a baixo custo, o sentimento de culpa. É claro também que o fato de
Lula ter arquivado -ao que parece, para
sempre- a aventurosa "ruptura do modelo" ajudou muito.
O carisma de Getúlio tinha outros componentes. Sua origem "aristocrática" jamais lhe permitiria transformar-se em líder popular em sentido estrito. Esse traço,
aliás, barraria sua ascensão ao poder naquele tempo e até em tempos mais recentes. Pelo contrário, Getúlio exibiu, sem inibições, marcas de "aristocratismo": entre
elas, o chapéu gelô e o charuto emergindo
da boca, destacado em tantas caricaturas
da época.
Seu dom carismático se revestia de uma
aura de paternalismo -expressa no conhecido bordão "pai dos pobres"-, muito eficaz para ir ao encontro dos anseios de
uma massa desvalida, cuja capacidade de
articulação autônoma era bem reduzida. O
conteúdo do discurso, apesar da forma
monótona e empolada, pelo menos para
os ouvidos de hoje, foi um elemento importante, no sentido de compor o carisma
do personagem.
Vejam, a respeito, a freqüente referência
em sua fala aos "humildes", que ganhou
mais concretude nas mensagens aos "trabalhadores do Brasil", acompanhadas de
um crescente apelo mobilizador.
O suicídio do presidente, interrompendo
bruscamente o chamado segundo governo
Vargas [1951-54], reforçou o carisma, já
agora no plano da memória.
O drama da morte de um Getúlio, acossado por seus inimigos, gozando ao mesmo
tempo de grande prestígio popular, tornou-o uma persistente lembrança -mitificada ou não- que poucas figuras políticas alcançaram.
Teria sido o suicídio uma opção pessoal
desesperada ou um último e calculado gesto político? A meu ver, ambas as coisas.
Lembremos, sob o primeiro aspecto, que a
idéia do suicídio em situações limite não foi
incomum na vida de Getúlio. Vejam uma
anotação de seu "Diário", de 3 de outubro
de 1930, quando eclodiu o movimento revolucionário, caminho que Getúlio tanto
hesitou aliás em empreender. Diz ele, a certa altura: "E se perdermos? Eu serei depois
apontado como o responsável, por despeito, por ambição, quem sabe? Sinto que só o
sacrifício da vida poderá resgatar o erro de
um fracasso".
Vida e história
Ao mesmo tempo, o
suicídio foi armado como um gesto político que deveria trazer conseqüências para a
história do país -circunstância nitidamente exemplificada pela "Carta-Testamento". Afora o conteúdo nacionalista e
mobilizador, a "Carta" tem um forte conteúdo emotivo. Nela, entre tantas coisas,
Getúlio refere-se às "aves de rapina" em
busca de sangue, a um povo "que agora se
queda desamparado", lembrando porém
que "cada gota de meu sangue será uma
chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência".
A "Carta-Testamento" tem o conhecido
fecho: "Serenamente, dou o primeiro passo
no caminho da eternidade e saio da vida
para entrar na História". Se a eternidade é
duvidosa, tanto para os que mandam
quanto para o comum dos mortais, a entrada de Getúlio na nossa história, descartados mitos e ódios apagados pelo tempo,
realizou-se plenamente.
Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Cia. das
Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 505
d.C." (depois de Cabral), do Mais!.
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