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UM EMPRESÁRIO DO SUBMUNDO
Georges Gobet - 1º.jun.2003/France Presse
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Eleitora vota durante pleito presidencial, em Lomé, capital do Togo |
Em "Francisco Felix
de Souza", o
africanista Alberto da
Costa e Silva traça
a biografia do
mercador baiano que
desafiou a marinha
britânica e a ordem
internacional para
dar continuidade
ao tráfico negreiro
no século 19
Luiz Felipe de Alencastro
especial para a Folha
A biografia do baiano Francisco Felix de Souza (1760?-1849), o Chachá, escrita por Alberto da Costa e
Silva, suscita de imediato uma pergunta: por que só agora apareceu este livro? Chachá teve um papel de destaque na
África, no economia brasileira e no comércio internacional. Sua vida atraiu a atenção
de historiadores, romancistas e cineastas
estrangeiros (1). O grande antropólogo e
historiador Karl Polanyi (1886-1964) considerava Chachá uma personalidade de
primeiro plano.
Todo esse interesse vem do fato de que
Chachá, conselheiro de Gezo, o rei do Daomé, e homem de influência na Costa dos
Escravos (cobrindo parte dos atuais territórios do Togo, Benin e Nigéria), desafiou
a marinha de guerra britânica e a ordem
internacional de sua época para dar continuidade ao tráfico negreiro.
A Bahia -onde ele nasceu, se criou e
mantinha filhos, sócios, bens e capitais-
era a sua base no lado americano. Ajudá,
no atual Benin (que se chamava Daomé),
era o centro de suas atividades na África.
Agindo na zona de articulação do comércio internacional com a economia tradicional africana, Chachá tinha perfeita noção do lado brutal e dinâmico do capitalismo contemporâneo. Os nomes de dois de
seus navios negreiros não nos deixam
mentir: um deles se chamava O Empreendedor, outro Mete Mão. Metendo a mão
nos povos africanos, Chachá se tornou um
empreendedor capitalista de porte. Um
grande empresário que atuava no lado
oculto da economia brasileira. Alguém
-como já se escreveu- que devia ser
comparado ao barão de Mauá, o grande
empresário do lado respeitável da economia brasileira.
Apesar disso, excetuando-se certos capítulos de livros e artigos de revista, geralmente traduzidos, nenhuma biografia de
Chachá havia ainda sido publicada no Brasil (2). Parte do desinteresse se deve à desinformação sobre os capítulos da história
brasileira que se desenrolaram no continente africano. Situação propriamente absurda, dado que a história da África é um
dos raros campos internacionais, cobertos por uma documentação redigida em português,
em que os historiadores brasileiros podem dar uma contribuição original à sua disciplina.
Alberto da Costa e Silva, que tanto tem feito para promover a história da África no nosso
país, narra a saga desse baiano que atravessou o oceano para tentar a sorte no golfo de Guiné.
Desde meados do século 17 houve colonos da América portuguesa que souberam se dar bem
na África -em Luanda, Benguela ou num porto qualquer da Costa da Mina-, em vez de ir
para outra região brasileira ou para Portugal. Como lembra Costa e Silva, no começo do século 18, um ex-escravo vindo do Brasil, João de Oliveira, fundou dois novos portos na região
-Porto Novo e Lagos. O primeiro é hoje a capital do Togo, e, o segundo, ex-capital da Nigéria, se transformou na maior cidade africana.
Chachá chegou à África nos anos 1780. Foi para a fortaleza portuguesa de São João Batista
de Ajudá. Construída em 1721 com fundos provenientes da Bahia, a fortaleza ainda em 1824
continuava a ser mantida com verbas do orçamento provincial baiano. A soberania portuguesa só foi restabelecida em 1844, quando uma guarnição de soldados portugueses desembarcados da ilha de São Tomé assumiu o controle da fortaleza. Até então o enclave estava sob
a soberania formal ou informal brasileira. Muitas vezes a bandeira do império do Brasil tremulou sobre o forte de Ajudá.
"Já, já!"
Conforme as conveniências, o estatuto de seus interlocutores e a conjuntura da
política internacional, Chachá assumia a nacionalidade brasileira ou portuguesa. Se não fosse mulato e quase branco, pelos critérios locais e baianos, diria que era dali mesmo, da Costa
dos Escravos, como o faziam, quando lhes convinha, os negros brasileiros morando na região.
Como observa Costa e Silva, uma versão sobre a origem do apelido "Chachá", que depois
virou título da função de conselheiro real exercida por Francisco Félix de Souza, é a de que o
nome seria tirado de uma expressão habitual dele: "Já, já!". É possível, pois há algo similar na
vizinhança. Nos anos 1830, uma comunidade de afro-brasileiros estabelecidos em Accra
(atual capital de Gana) era chamada de "tabong", corruptela da expressão que eles usavam o
tempo todo: "Tá bom!".
Chachá e seus sucessores africanos sumiram do capitalismo e da historiografia brasileira.
Mas alguns de seus sócios baianos tiveram mais sorte. O comendador Joaquim Pereira Marinho -que lavou o dinheiro do tráfico negreiro no Banco da Bahia (incorporado pelo Bradesco em 1973), do qual é um dos fundadores, e na Santa Casa de Misericórdia- tem até hoje, plantada na frente do hospital Santa Isabel, a estátua que encomendou a um escultor italiano para posar de benemérito baiano e pai da pátria.
"Global player"
Costa e Silva conhece bem diversos países africanos, onde passou anos
como diplomata e como pesquisador apaixonado pelo "continente negro". Seu livro sobre
Chachá é uma referência e um caminho para novos estudos. Seria interessante saber mais
sobre o lado brasileiro dos negócios de Chachá. Muita informação deve estar enfiada nos arquivos da Bahia e de Portugal.
Mas seria fundamental seguir de perto o "global player" que Chachá desafiava, a Inglaterra. Os ingleses instauraram no Parlamento, tanto na Câmara dos Comuns quando na Câmara dos Lordes, várias CPIs sobre o tráfico negreiro. Dezenas de implicados no negócio, grandes negociantes, diplomatas, oficiais navais tinham opinião formada sobre o tráfico negreiro
brasileiro e Chachá. Seus depoimentos foram registrados nas atas parlamentares reeditadas,
em 1968, pela Irish University Press e logo estarão on-line. Quando esse material for analisado ficará mais evidente a herança de Chachá e da via brasileira para o atraso que o país trilhou no século 19.
Notas
1. Werner Herzog fez o filme "Cobra Verde" (1988, baseado no romance de Bruce Chatwin sobre Chachá, traduzido no Brasil como "O Vice-Rei de Uidá", Companhia das Letras, 1989);
2. Pierre Verger, em seu "Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos" (ed. Corrupio, SP, 1987), abordou a história de Chachá, que foi recentemente atualizada num artigo do grande especialista do Daomé, Robin Law, "A Carreira de Francisco Félix de Souza na África Ocidental 1800-1849", revista "Topoi", nº 2, 2001, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Costa e Silva, que cita escrupulosamente suas
fontes, dedica em parte seu livro a esses dois autores.
Luiz Felipe de Alencastro, 58, é professor na Universidade de Paris/Sorbonne e bolsista da John Carter Brown Library,
da Universidade Brown (EUA).
Francisco Felix de Souza
208 págs., R$ 29,00
de Alberto da Costa e Silva. Ed. Nova Fronteira (r.
Bambina, 25, CEP 22251-050, Rio de Janeiro, RJ, tel.
0/xx/ 21/ 2131-1111).
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