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+ brasil 503 d.C.
Guardar a memória de alguém cria o risco constante de trair os acontecimentos de sua vida em uma moldura arbitrária
Os que vencem após a morte
Jurandir Freire Costa
A morte das pessoas queridas impõe um difícil trabalho aos que lhes sobrevivem: como mantê-las na lembrança depois que o
luto cessa. O sofrimento, como toda emoção, cedo ou tarde passa. Os que
morrem, porém, podem escapar ao esquecimento, se a posteridade assim decidir. Anamaria Ribeiro Coutinho morreu.
Cabe aos que a conheceram decidir qual
o destino de seu nome. A empresa, obviamente, é temerária. Como guardar a
memória de alguém sem trair sua vida?
Lembrar é sempre fixar os acontecimentos em uma moldura arbitrária. No
caso da morte, o perigo do arbítrio é
maior, pois aquele que é lembrado nem
tem chance de escolher a moldura nem o
retrato emoldurado. Resta, então, seguir
o exemplo dos mais nobres, ciente do
risco corrido, mas também da esperança
de acertar onde é tão fácil errar.
Hannah Arendt [pensadora alemã,
1906-75" -e, nessas horas, quem melhor que Arendt?- foi uma das luminosas inteligências capazes de falar da morte, respeitando a dor dos que ficam e a
lembrança dos que se foram. Em uma
homenagem prestada a Isak Dinesen
[pseudônimo da escritora dinamarquesa
Karen Blixen, 1885-1962", ela citou o que
a romancista dissera sobre a dor: "Todas
as dores podem ser suportadas se você as
puser numa história ou contar uma história sobre elas".
Nas histórias, a dor se torna suportável
porque deixa o tempo fútil da emoção
pela imortalidade da duração. Contemos, portanto, a história de Ana [1940-2002". Qual história, porém? Com certeza, não um relato psicobiográfico. Quem
a conheceu sabe o quanto ela era avessa a
tudo isso. Contar sua história, creio, é falar de sua inspirada paixão pelo saber e
pela doação do que sabia.
Balzac [escritor francês, 1799-1850"
disse que "as grandes paixões são raras
como as obras-primas". A relação de
Ana com o conhecimento tinha o toque
da obra-prima. Sua vida, dedicada à psicologia na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), foi um primor de conduta
universitária. Além disso, eis o mais importante -no trato com os enigmas da
mente tinha uma curiosidade insaciável.
Onde a maioria de nós pedia pausa,
Ana teimava em continuar. Qualquer
afirmação imperativa a impacientava;
qualquer argumento especioso a fazia
bocejar. Psicologia, a seu ver, jamais poderia ser o truque de deixar de fora o que é embaraçoso explicar. A experiência humana capturada em sua origem ambígua, fluida, imprecisa, nunca tem o rosto engessado que apresenta nos vocabulários teóricos oficiais. Daí vinha o caráter provocante, ofuscante e, tantas vezes, encantadoramente gauche de suas perguntas e questões. Se pudesse, de forma tosca e "ad hoc", classificar os que se interessam pela vida mental, diria que se dividem em dois grupos: os que querem conhecer a natureza da alma humana e os que esmiuçam as causas dessa vontade e da satisfação com as conclusões a que chegam. Ana pertencia ao último.
Superfície aberta
Como Wittgenstein [filósofo austríaco, 1889-1951], a quem não se cansava de reverenciar, sua sensibilidade era uma imensa superfície aberta a uma única e enorme questão: o que nos faz "dar valor" às coisas antes mesmo de sabermos o que é "valor"? O que nos faz crer que o bem é preferível ao mal; o belo ao feio; o verdadeiro ao falso ou o justo ao injusto? Será que, onde vemos a mais elementar "necessidade", já não a descrevemos desse modo porque ela é um "valor" avant la lettre ou, melhor, "avant le langage"? "Valor" é uma propriedade de palavras e frases ou uma propriedade da vida?
Em seus anos de ensino, dividiu essa inquietação com todos os alunos e colegas que se dispuseram a ouvi-la ou a fazê-la ouvir suas próprias idéias. Para entender, no entanto, o alcance do que a fascinava, é preciso enfatizar o que ela insistia em deixar claro.
O que nos faz crer que o bem é preferível ao mal; o belo ao feio;
o verdadeiro ao falso ou o justo ao injusto?
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Em psicologia, não se chega ao problema dos valores sem um pé na démarche
científica. Observar a variação singular da vida, nas brechas das grandes teorias, não é ponto de partida; é ponto de chegada. É o prêmio dado ao exercício do rigor
do método, não à retórica preguiçosa.
Ver o mundo mental como um artista é
privilégio de quem pensou e agiu como
um cientista. Quem abandonar o "longo
e ventoso caminho" pelo atalho da facilidade irá, no máximo, como disse
Arendt, gozar da fama de "uma semana
de capas de revista".
Esse talento incomum levou Ana a circular perfeitamente à vontade nos salões
de Freud, Wittgenstein, Quine ou Foucault com o olhar tímido e hipersensível
de um Kafka, de um Proust, de um Walter Benjamin ou de uma Clarice Lispector. Não lhe bastava, ao modo da ciência,
entender como as palavras se soldam às
coisas; ela queria, ao modo da arte, saber
o que sobra da soldagem. As várias teorias psicológicas -behaviorismo, mentalismo, consciencialismo, materialismo
reducionista, pragmatismo linguístico,
psicanálise etc.- produziram, sem dúvida, teses empíricas interessantes sobre
a relação mente-corpo. Mas, pensava ela,
o que verdadeiramente importa são "os
restos" da razão instrumental; as raspas
de onde emerge o sentido do que nos faz
querer viver ou morrer. Freud, Winnicott ou Lacan, para falar do que me concerne, certamente entenderiam esse ímpeto rebelde às convenções.
Seja como for, não há modo radical de
pensar sem consequências. Ana não usufruiu, com público extra-universitário, o
prestígio intelectual ao qual fez jus. Era
uma asceta das idéias e, até o fim, não cedeu ao "publish or perish", esse nocivo
vírus que infectou boa parte da mentalidade acadêmica. No íntimo, com ou sem
consciência plena, se manteve fiel a Wittgenstein: escreveu pouco, pensou muito,
perguntou ainda mais e, sobretudo,
"mostrou" com exemplos de vida que o
essencial da ética está no que é "calado".
Minha história de Ana pára aqui. É o
começo de uma história de admiração
por tudo o que ela me ensinou e, principalmente, de gratidão pelas lições de cortesia, troca intelectual, delicadeza, honestidade e amor ao conhecimento que,
dificilmente, esquecerei enquanto viver.
Sêneca disse que "nada nos pertence
daquilo que o acaso nos traz". O reconhecimento póstumo, contudo, é uma
exceção a essa regra. Embora trazido pelo acaso, uma vez ganho, não pode ser
perdido. Os que o recebem, como Ana,
são titulares de dons em méritos que o
tempo não corrompe. Eles são os melhores, e sobre eles disse Cícero: tudo seria
diferente "se vencessem na vida aqueles
que venceram na morte".
Ana, em nome dos que te queriam tanto bem, -parentes, amigos e colegas-,
um carinhoso adeus!
Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor
de medicina social na Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "Sem
Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções
Privadas" (ed. Rocco). Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".
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