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Último romance de Jun'ichiro Tanizaki, "Diário de um Velho Louco" faz a elegia de um amor senil
As miudezas irrecuperáveis
Marcelo Coelho
Colunista da Folha
Diário de um Velho Louco". O título deste livro tem uma franqueza, uma secura, uma perpendicularidade que fazem lembrar aqueles números de caratê em que o sujeito está sentado diante de uma pilha de tijolos, em estado de muita concentração, como quem fosse fazer uma reverência, e de repente parte a pilha ao meio com uma cabeçada de mestre.
Mas o protagonista deste romance de
Jun'ichiro Tanizaki não é propriamente um louco. Aos 77 anos, o sr. Utsugi
aplica-se, com muita lucidez, tenacidade e método, à paixão masoquista que
nutre por sua nora, a provocativa e ocidentalizada Satsuko.
A história se passa em Tóquio, por
volta de 1960. Sofrendo de diversas
doenças, em especial de dores na mão
esquerda, Utsugi passa o tempo hostilizando sua mulher e a enfermeira e arquitetando planos para obter um pouco da atenção e do desprezo da bela Satsuko. Com o passar do tempo, Utsugi
vai podendo registrar em seu diário alguns breves e intensos momentos de
triunfo. Satsuko cospe-lhe no rosto,
permite que lhe beije os pés e termina
acompanhando-o numa viagem até
Kyoto, onde Utsugi irá escolher o próprio jazigo.
O contraste entre a cidade de Tóquio,
em pleno frenesi de modernização, e a
tradicional Kyoto está presente no livro
e também, com mais ênfase, na biografia de seu autor. Publicado em 1962,
"Diário de um Velho Louco" é o último
romance de Jun'ichiro Tanizaki [1886-1965". Tanizaki abandonou Tóquio na
década de 20, cada vez mais desgostoso
com o processo de ocidentalização do
seu país.
Não é fácil identificar ironia em meio
ao tom pungente e desconfortável deste
romance, mas em diversos momentos
podemos ver de que modo a submissão
do velho Utsugi por sua nora serve como metáfora para o abandono das velhas tradições. Em seu diário, ele conta
como pretende demolir a ala velha de
sua residência e descreve o banheiro
novo, "azulejado e com chuveiro", que
irá instalar para comodidade sua e de
Satsuko.
Mais adiante, resolve construir uma
piscina no jardim. "Satsuko me disse
que não quer essas piscininhas que se
vêem comumente na casa dos outros. A
dela precisa ter no mínimo 15 por 20
metros. Se for menor do que isso, ela
não conseguirá executar o número de
nado sincronizado."
Os familiares do ancião, a começar
pela sua própria mulher, acatam em silêncio a vaga empreendedora e modernizante inspirada por Satsuko. Ao mesmo tempo, acentua-se o declínio físico
de Utsugi. Muitas das páginas deste
"Diário" se ocupam de tratamentos, dores e dosagens de analgésico.
O leitor não chega a sentir simpatia
nem repulsa pelo personagem. Utsugi é
ranzinza e patético, minucioso e lamentável; Satsuko não foge do tipo clássico
da mulher destruidora e caprichosa, no
gênero do "Anjo Azul", de Heinrich
Mann, ou das personagens de outros livros do próprio Tanizaki.
"Diário de um Velho Louco" não se
empenha em provocar maiores "frissons" no leitor -nem morais nem sexuais. Obsessões, quimonos, piscinas e
fetiches não o tornam menos austero e
elegíaco.
O controle rigoroso da narrativa, que
vai num crescendo discreto, rumo a um
desfecho seco e pouco sensacional, faz
com que alguns trechos mais poéticos
se destaquem em meio à monomania
do protagonista. No dia 4 de setembro,
Utsugi anota em seu diário que o outono está chegando. De madrugada, julgara ouvir o som de um grilo dentro do
quarto; lembra-se da infância. À medida que vai amanhecendo, a sua impressão se desvanece, e uma realidade prosaica surge em primeiro plano.
Nessas duas ou três páginas, concentradas e intensas, memória pessoal e experiência histórica se fundem na mesma sensação de que algo irrecuperável
acabou de acontecer. Nenhuma obsessão, decerto, é capaz de compensar uma
perda desse tipo.
Diário de um Velho Louco
204 págs., R$ 28,00 de Jun'ichiro Tanizaki. Tradução de Leiko Gotoda. Ed. Estação Liberdade (r. Dona Elisa, 116, CEP 01155-030, SP, tel. 0/ xx/ 11/ 3661-2881).
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