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Obras de Saint-Hilaire e de Teodoro Sampaio revelam o estranhamento diante do interior do país no século 19
Viagens pelo Brasil profundo
Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha
Por certo cansado de ver seus laivos
de byronismo sofrerem constantes críticas dos nacionalistas mais
exaltados, o poeta Álvares de Azevedo, lá pelos idos de 1850, soltou a seguinte ironia acerca da tão apregoada associação entre literatura nacional e exaltação da natureza dos trópicos: "Não escutes essa turba embrutecida no plagiar e
na cópia. (...) Falam nos gemidos da noite no sertão, nas tradições das raças perdidas da floresta, nas torrentes das serranias, como se lá tivessem dormido ao menos uma noite. Mentidos! Tudo isso
lhes veio à mente lendo as páginas de algum viajante".
Exagero do jovem literato contrariado?
Nem tanto. É sabido que, a partir do desembarque de d. João 6º, em 1808, o país
recebeu uma avalanche de visitantes do
Velho Mundo, muitos deles homens de
cultura. Tais "sábios", como eram então
denominados, promoveram uma verdadeira "redescoberta do Brasil", impondo
a toda uma linhagem de intelectuais brasileiros do Oitocentos um certo modo de
ver o país.
A propósito de tal relação, duas obras
recentemente reeditadas possibilitam ao
leitor conhecer um pouco mais dessa
"redescoberta" e avaliar seus impactos
sobre a inteligência local. A editora do
Senado Federal, dentro da coleção "O
Brasil Visto por Estrangeiros", acaba de
relançar "Viagem ao Rio Grande do Sul",
de Augusto Saint-Hilaire (1779-1859),
obra de vulto de um dos mais importantes e conhecidos visitantes europeus que
passaram pelo Brasil na primeira metade
do Oitocentos. Paralelamente, a Companhia das Letras, na coleção "Retratos do
Brasil", traz a público "O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina", de Teodoro Sampaio (1855-1937), narrativa
pouco conhecida de um representante
modelar da elite intelectual brasileira da
virada do século 19 para o 20.
A narrativa de Saint-Hilaire, publicada
postumamente em 1887, dá conta da última grande expedição exploratória do
naturalista na América austral. Saint-Hilaire, partindo de Torres em junho de
1820, visitou Porto Alegre, desceu à Província Cisplatina [atual República do
Uruguai", passou pelas Missões, percorreu o rio Jacuí e, em maio de 1821, embarcou de volta para a corte do porto de
Rio Grande. Em comparação a outros relatos do naturalista, há algumas peculiaridades dignas de nota neste "Viagem ao
Rio Grande do Sul". Saint-Hilaire não esconde o seu contentamento em excursionar por uma região do Novo Mundo
que contava com um clima "familiar" e
uma população que lembrava em muito
os camponeses da "civilizada" Europa.
Ao naturalista não passaram despercebidas as maneiras distintas dos portalegrenses ou o progresso da "ativa" Montevidéu. As relativas virtudes do Sul e dos
sulistas, no entanto, não livravam a região dos males que, segundo Saint-Hilaire, assolavam todo o interior do Brasil
por ele visitado: o isolamento, a ignorância, o descaso do Estado, a miséria e, sobretudo, o "preocupante avanço da miscigenação", avanço que, aos olhos do naturalista, estava em via de "ameaçar" a pureza racial dos sulistas.
É exatamente desse interior mestiço e distante da capital federal que nos fala "O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina" (1906), do engenheiro Teodoro
Sampaio. O baiano, "naturalizado" paulista, percorreu a região na qualidade de
segundo engenheiro da Comissão Hidráulica, encarregada, entre outras coisas, de estudar as condições de navegação do rio São Francisco. Em julho de
1879, a Comissão partiu do Rio de Janeiro rumo a Alagoas e, em Penedo, iniciou
a viagem rio acima. A excursão exploratória terminou em Pirapora, de onde o
engenheiro, agora sozinho, se dirigiu para Carinhanha e deu início a uma jornada de 150 léguas (990 km) pela chapada Diamantina.
Saint-Hilaire não esconde o seu contentamento em excursionar por uma região do Novo Mundo que contava com uma população que lembrava em muito os camponeses da "civilizada" Europa
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O relato de tal peripécia, ainda que saído da pena de um brasileiro culto e conhecedor do seu país, traz muito daquele
estranhamento, daquela "visão de estrangeiro" que encontramos na narrativa de Saint-Hilaire. Sampaio, vale lembrar, era um homem proveniente de um
Brasil que há décadas recebia os influxos
da Europa e as atenções do governo central. O país do sertão, aquele que mais
tarde também seria descoberto por Euclides da Cunha, este não lhe era assim
tão familiar. Nessa região de paisagens
grandiosas, mas muito áridas, de campos estéreis, de uma população que é a
mistura de "todas as raças representadas
na América", de povoações quase fantasmas, de cidades que são "verdadeiras taperas", em suma, nessa região onde a natureza aguardava a intervenção humana
para tornar a vida mais tolerável, Sampaio, tal como Saint-Hilaire, descobriu
um Brasil "mais habitado do que se pensa e menos rico do que se presume".
Jean Marcel Carvalho França é professor de história da Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP). É autor de "Literatura e Sociedade no Rio de
Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda) e "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio).
Viagem ao Rio Grande do Sul
576 págs., R$ 25,00 de Auguste de Saint-Hilaire. Tradução de Adroaldo Mesquita da Costa. Ed. do Senado Federal (praça dos Três Poderes, s/nº, CEP 70168-970, Brasília, DF, tel. 0/xx/ 61/311-3770).
O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina
352 págs., R$ 31,50 de Teodoro Sampaio. Ed. Companhia das Letras (r.
Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/ 3167-0801).
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