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VONTADE DE POTÊNCIA
Dois primeiros volumes de "As Ilusões Armadas", de Elio Gaspari, buscam decifrar
os dilemas e contradições subjacentes ao período de implantação do regime militar no Brasil, entre 1964 e 74
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Aspásia Camargo
especial para a Folha
As Ilusões Armadas" [rubrica que
engloba os recém-lançados "A
Ditadura Envergonhada" e "A
Ditadura Escancarada", um terceiro volume, que deve sair em agosto de
2003, e outros dois, ainda sem previsão
da data de publicação], de Elio Gaspari, é
um livro-síntese que retrata e interpreta
com ousadia os anos críticos de implantação do regime militar em meio a graves
contradições e dilemas. Como ele mesmo diz, é comum tentar explicar como
tais experiências começam, mas raramente alguém se dispõe a decifrar como
terminam. A primeira parte do problema parece estar agora esclarecida.
O primeiro grande momento de "As
Ilusões Armadas" se tece em torno da
precária e caótica tomada do poder em
64, que nos expõe as Forças Armadas divididas entre lideranças em disputa. A
vontade de poder que acomete os militares surge do vácuo de um projeto civil
sindical-populista, precariamente desenhado no confronto contra João Goulart
[presidente de 61 a 64, quando foi deposto pelo golpe militar] e Leonel Brizola,
mas sempre buscando uma identidade e
uma institucionalização que o regime jamais alcançou.
Grande bagunça
Segue-se a desastrada construção do Serviço Nacional de
Informações (SNI) e a visão patética das
diversas correntes insurrecionais de resistência que expõem a fragilidade do regime, refletida também na de seus próprios combatentes.
A leitura permite, no entanto, ir mais
longe, buscando extrair conclusões, pois
o autor não se exime de interpretar tendências e fatos, chamando a atenção para os desencontros e incongruências do
regime que se instaura vagamente imbuído da missão institucional de mudar
o Brasil, extirpando os seus vícios mais
profundos: corrupção, radicalismo ideológico, clientelismo eleitoreiro, demagogia política.
O regime foi, aos poucos, evoluindo
para pior, até o muro de contenção da
era Geisel (74-79), que recuperou o controle sobre os quartéis, restaurando a
hierarquia militar corroída pela escalada
da violência e da tortura e pelos instintos
anárquicos dentro da corporação.
Aguardamos, porém, uma análise
equivalente da derrocada, para entender
melhor por que o ocaso do regime foi tão
lento. O general Golbery [do Couto e Silva (1911-87), criador do SNI" já havia antecipado que o regime militar terminou
não apenas porque a sociedade se tornou
mais consciente e os empresários mais
exigentes, mas também porque o regime
se converteu em uma grande bagunça,
vítima de seu próprio descontrole.
Vasta biografia
O poder debilitado tornou-se vítima do buraco negro
da centralização excessiva, da ilegalidade
e dos interesses pessoais e, sobretudo, da
desordem institucional, com desequilíbrio das contas públicas e ainda os restos
de um passado de desigualdades que não
parece ter sido prioridade de governo.
O texto, de leitura fascinante e acessível, incorpora vasta bibliografia, composta de arquivos, relatos e memórias,
agora enriquecidos pelo arquivo privado
de Golbery, uma preciosidade que convém ressaltar.
Que Elio Gaspari é um apaixonado pela história, sempre soubemos -e seus
leitores disso sempre tiraram o maior
proveito. Mas o que este livro tão longamente esperado nos oferece de mais precioso é a cuidadosa reconstituição dos
fatos e dos personagens com seus estilos
próprios, ambições e interesses, inaugurando o regime de consulado no qual havia ditadura, mas sem ditador. É como se
episódios bem conhecidos adquirissem
vida nova, tornando-se mais próximos e
compreensíveis. A leitura de "As Ilusões
Armadas" oferece também interpretações mais ambiciosas sobre os fatos que
analisa e que revela.
O regime, aponta Gaspari, teve de saída
graves problemas de legitimidade jamais
resolvidos, particularmente com os intelectuais, estudantes e formadores de opinião. Sofreu também de uma obsolescência crônica, visto que o seu conservadorismo de direita não permitiu a incorporação das aspirações à esquerda por
grandes reformas estruturais, algumas
timidamente realizadas dentro de um
processo vigoroso de desmobilização
que entregou o poder à burocracia.
Centralismo de 1930
Internamente
os dirigentes perceberam, desde o início,
que seria impossível ganhar eleições diretas e cumprir com êxito os rituais democráticos, já que o regime militar era
tão impopular. Castello Branco [presidente de 64 a 67" tentou manter um meio
termo no qual democracia e intervencionismo pudessem se recompor diretamente. Mas suas ambiguidades políticas
-evitando confrontar diretamente os
radicais ou ceder completamente a
eles- acabaram fragilizando suas oportunidades de crescimento.
No entanto a fratura maior foi, sem dúvida, repetir em 1964 o centralismo intervencionista de 1930, na época em mãos
de tenentes que, em 1964, tornaram-se
generais. Internacionalmente, o desencontro não podia ser mais desastrado.
Enquanto a década de 60 inaugura a entrada em cena de grandes movimentos
sociais cada vez mais ávidos de uma renovação geracional e de um choque de
novas idéias, no Brasil um velho estamento burocrático tomava o poder, na
contramão da história, negando as oportunidades de um liberalismo mais moderado, mais atento à modernização tecnológica e à nova lógica da integração regional e dos movimentos sociais.
A ousadia e segurança da interpretação
desse período controvertido permitem
desvendar os nexos desconexos de um
regime sem grandeza, cuja missão inicial
era devolver o poder aos civis, mas que
acabou mediocremente dominando o
país durante um quarto de século.
Aspásia Camargo é diretora do Centro Internacional de Desenvolvimento Sustentável da Fundação Getúlio Vargas e doutora em sociologia pelo
Instituto de Altos Estudos em Ciências Sociais da
Universidade de Paris (França). É autora de "1937-O Golpe Silencioso" (ed. Rio Fundo).
A Ditadura Envergonhada
424 págs., R$ 40,00
de Elio Gaspari. Companhia das Letras (r. Bandeira
Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel.
0/xx/11/3167-0801).
A Ditadura Escancarada
512 págs., R$ 44,00
de Elio Gaspari. Companhia das Letras.
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