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PONTO DE FUGA
Mitos
JORGE COLI
especial para a Folha
A Semana de Arte Moderna ocorreu há 80 anos. Em
São Paulo, neste aniversário, três mostras importantes
giram à volta da questão moderna nas artes brasileiras.
Uma delas encerra-se por estes dias, no MAM: ela põe
em paralelo Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral. Outra,
que ocorre na Faap, é uma retrospectiva intitulada
"Brasil 1920-1950, da Antropofagia a Brasília". A última,
no CCBB, expõe "Arte Brasileira na Coleção Fadel - Da
Inquietação do Moderno à Autonomia da Linguagem".
Juntas, elas encerram um conjunto excepcional de
obras, algumas bastante raras. Nenhuma, porém, satisfaz inteiramente enquanto reflexão. O paralelo entre Di
e Tarsila se sustenta pela boa intuição na escolha das telas, tarefa delicada em se tratando, por razões diferentes, de pintores bastante irregulares. Mas a comparação
impossível entre dois artistas irreconciliáveis trava um
diálogo de surdos. Acrescente-se uma ausência de rigor
em temas e datas, uma visão pseudo-sociológica constrangedora de tão rasa, o emprego desarmado e desprevenido de noções como "realidade brasileira".
Ao contrário, na mostra da Faap, ampla, ambiciosa,
pontuada por obras-chave, paira um espírito minucioso e aplicado de manual. Pena que a concentração necessária seja bastante perturbada por fundos sonoros
superpostos e misturados em cacofonia involuntária.
Enfim, a coleção particular de Hecilda e Sérgio Fadel
traz, ao público, obras incomuns e de primeira água.
Cidades - A mostra da coleção Fadel é a única a ser
acompanhada por uma proposta de revisão histórica. A
própria natureza dos objetos reunidos permite tornar
relativa a preponderância paulista nas novidades modernas, causada pelo estrépito da "Semana". É um
grande mérito, sem dúvida, que a exposição tenha sublinhado esse aspecto. Mas seria preciso ir além de um
jogo SP x Rio, que pode seduzir, mas que é redutor.
Temperos - Está para ser escrita uma história sobre as
modernas artes brasileiras que preserve ramificações
complexas, evitando velhas categorias e velhas polêmicas. Nenhuma das três mostras paulistanas sobre a modernidade no Brasil tenta, de modo consistente, um recuo e uma leitura renovada da questão. Oitenta anos
depois, os mesmos programas propostos são retomados quase sem discussão, como estes: "brasilidade" nas
artes, vinculada a uma suspeita identidade nacional;
oposição ao "academismo", noção que outrora tinha
valor polêmico e que hoje se esvaziou de sentido; celebração da "antropofagia", inventada um pouco mais
tarde, por volta de 1928.
Oswald de Andrade tinha um sentido infalível da fórmula. Em tempos de valorização internacional dos mais
variados primitivismos, ele encontrou um rótulo para
recobrir, ao mesmo tempo, nacionalismo e internacionalização. A etiqueta antropofágica propulsava, dentro
da cultura brasileira, com humor truculento e veemência de estilo, um princípio bem genérico: que o impacto
cultural sobre um indivíduo ou um grupo é sempre, de
alguma forma, assimilado e reelaborado. Ora, a palavra
antropofagia, que tem sua data e teve o seu tempo, é ainda hoje empregada como conceito teórico específico ao
Brasil. Entre outras coisas, ela oferece uma ilusão de superioridade: só nós sabemos deglutir, para transformar
em força expressiva "brasileira", os pitéus fabricados
por outras culturas...
Prisma - Há uma urgência em renovar olhares, em tomar distâncias às heranças culturais recentes, evitando
eternas reiterações. As artes, todas as artes, seriam bons
terrenos para as discussões sobre a própria idéia que
encerra a palavra brasileiro. Não para que se defina o ser
brasileiro no presente, diante de outras nações, como se
fazia antes. Mas para retraçar as características que foram atribuídas a essa noção ao longo dos dois últimos
séculos. Com isso, a inteligência dos fenômenos culturais ocorridos neste recorte geográfico chamado Brasil
certamente ganharia muito.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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