UOL


São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PONTO DE FUGA

A dança dos ovos

Reprodução
O artista norte-americano Matthew Barney em cena de "Cremaster 4"


Os testículos se movem. Sobem, descem, aproximam-se ou se afastam. Todo mundo sabe disso. Mais sutil, ou mais técnica, é a informação de que eles estão suspensos por um músculo, o cremaster, responsável por esse bailado que não pára. Cremaster é um nome que soa bem, como que saído de uma odisséia intergaláctica. Matthew Barney, ex-atleta, agora artista que ramifica sua produção por meios os mais diversos, batizou com ele um ciclo de cinco vídeos.
Na verdade, além dos vídeos, existem também desenhos, fotografias, esculturas (que serviram como elementos de cenário), capazes de formar uma imensa instalação. Tudo se interliga, como por uma teia de aranha. O centro é um poderoso imaginário. Ao percorrer os vários fios, chega-se sempre a pontos de encontro obsessivos, na trama invisível tecida entre todas as sugestões. São estímulos em movimento.
Barney, hoje com 30 e poucos anos, começou o projeto em 1994. O impacto foi certeiro: há um "estilo" Barney que percorre revistas de moda, e já se disse que o videoclipe "Dope Show", de Marilyn Manson, procede de "Cremaster 5". A produção do ciclo teve o apoio de Barbara Gladstone, a galerista de Barney em Nova York; o retorno financeiro vem da venda dos próprios vídeos e de objetos presentes nas filmagens ou derivados delas. É uma situação cuja novidade foi assinalada por alguns críticos: a galeria não expõe a posteriori, ela precede a obra, financiando diretamente sua fabricação.
Rarefeito - "Matthew Barney, The Cremaster Cycle", uma exposição apresentada primeiro em Colônia, depois em Paris, abre-se, agora, no Guggenheim de Nova York. No Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris, os cinco vídeos do ciclo apareciam em televisores suspensos no alto, em cada sala. Os diferentes objetos são feitos de estranhos materiais, entre eles a vaselina endurecida pela ação do frio. Tudo é plástico e plasmado, tudo flui.
Barney centra-se no corpo, como transitório, metamórfico, como sempre capaz de ser outra coisa. Não se trata de envelhecimento e degenerescência, trata-se de transformação, de mutação. Há, no mundo de Barney, a capacidade de modificar o corpo à maneira dos "bodybuilders", da cirurgia plástica, dos enxertos; há o velho fundo, herdado da Antiguidade clássica, dos híbridos eróticos e monstruosos: faunos, sátiros, centauros; há a cultura cinematográfica, que serve como grande reserva onírica. Ovídio e Hollywood, atletismo moderno e paisagens abissais, Houdini e o Chrysler Building, Busby Berkeley e Norman Mailer se misturam em intrincados cruzamentos metafóricos, em alusões e associações. Barney conduz a sexualidade para a androginia e supõe docilidade e obediência na matéria do corpo, como a vaselina, que pode ser sólida ou líquida. A bem dizer, Barney não "fabrica" uma "obra", já que essas noções induzem algo de fixo, de definitivo. Ele molda materiais mutáveis, assim como molda, em seus vídeos, a memória do cinema.
Lugar - No mundo de Matthew Barney, a verdade da arte não é a da natureza, e a natureza parece simples demais diante da arte. A ciência de hoje, a engenharia genética, oferece também a curiosa presunção de que a natureza é tosca e grosseira, diante da inteligência humana. Com gravidade, sem humor, de um modo sacralizado, Barney cria seu universo de artifícios, onde tudo é investido por um calafrio de morte, e os desejos parecem congelados, para além de um estilo ou da moda.
Recepção - A crítica francesa mostrou-se perplexa diante da exposição "Cremaster", que esteve no museu de Arte Moderna da Cidade de Paris. Os "Cahiers du Cinéma" falam de um "sucesso plástico", mas de uma direção ausente nos vídeos. "Le Monde" diz que é bom, mas que não é cinema. Isso vem confirmar, por sinal, a escolha de Barney: seus vídeos podem ser projetados em sala, mas não foram feitos para isso. Barney confecciona seus vídeos para serem vendidos, para serem possuídos como objetos de arte.

Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: + autores: As três vidas de Ulisses
Próximo Texto: José Simão
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.