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Mel e sangue
Juan José Saer
Em 1951, em um artigo intitulado
"O Kitsch", Hermann Broch escreveu que o kitsch é facilmente
identificado com a mentira, mas
que a culpa recai também sobre o homem que necessita desse espelho mentiroso para nele se reconhecer e, não sem
certa satisfação, tomar partido de sua falsidade. Mais adiante adverte: "Vale lembrar que o kitsch moderno está longe de
ter encerrado sua carreira vitoriosa e que
continua a se derramar em mel e sangue,
sobretudo no cinema".
Não apenas no cinema. Quase todos os
aspectos da atualidade estão saturados
de kitsch, a tal ponto que se tornou um
valor de referência, tanto no plano artístico como no cerimonial, e é praticamente impossível diferenciá-lo da sociedade
mesma. No plano artístico, seria absurdo
e até injusto citar exemplos, pois, a bem
da verdade, quase ninguém poderia atirar a primeira pedra, e os dois ou três bodes expiatórios que acusássemos publicamente de praticar o kitsch teriam de
ser escolhidos ao acaso, dentro de uma
lista tão extensa que, por falta de espaço,
permaneceria a salvo da denúncia.
Não há dúvida de que a comunicação
de massa é em grande parte responsável
por essa situação, mas o discurso e os ritos governamentais, a linguagem diplomática, o Carnaval acadêmico etc. etc.
também têm algo a ver com ela. Além
disso, o destinatário de todo esse aparato, com a insaciável fome de mau gosto
que Broch lhe atribui com tanta pertinência, está muito longe de ser uma vítima inocente.
Para falar com propriedade, deveríamos dizer não que o kitsch nasceu na
Alemanha e no século 19 (como faz a história da arte), e sim que foi identificado
ali, como um vírus que assume formas
mais ou menos variadas em diferentes
latitudes, mas que tem um ou mais elementos comuns que constituem sua
identidade biológica. O contraste de
"mel e de sangue" é kitsch, mas também
pode sê-lo a irrupção do poético no discurso político ou diplomático, como na
expressão "la paix des braves" (a paz dos
bravos), que pretende dar um sentido
épico à interrupção momentânea de
uma série de atos sanguinários perpetrados pelos beligerantes, que se autoqualificam de valentes, com as armas mais covardes, imorais e traiçoeiras. O kitsch
dessa expressão não reside na sua hipocrisia, que se aceita como um fato dado,
mas no tom descaradamente poético
que se imprime ao eufemismo.
Incêndio de Roma
Em seu belo artigo, Hermann Broch comenta de passagem que, não por acaso, Hitler e seu predecessor, o kaiser Guilherme 2º, eram
fervorosos adeptos do kitsch, e que Nero
o praticou em suas mil facetas, incluído o
incêndio de Roma. Aos olhos do imperador, o "espetáculo dos cristãos transformados em tochas vivas nos jardins imperiais devia ter certas tonalidades artísticas, desde que se abstraíssem os gritos de
dor das vítimas".
Mas esses são casos extremos. Não devemos esquecer que, assim como Hitler,
Winston Churchill também pintava quadros e que, quando escreveu suas memórias (que lhe valeram o Prêmio Nobel de
Literatura), escolheu o seguinte título para o volume que narrava a iminência da
Segunda Guerra Mundial: "The Gathering Storm". No caso de Nero e Hitler, falar em kitsch parece insuficiente. Talvez
fosse melhor aplicar-lhes a expressão
que Roland Barthes cunhou para definir
o estilo de Tácito: "Barroco fúnebre".
Agora, no marco da cultura ocidental e
onde quer que seus efeitos se manifestem, praticamente não existe esfera oficial onde o discurso, o aparato, a retórica, não estejam sempre, como diz Broch,
"resvalando para a fronteira onde começa a pacotilha".
Cerimônias de posse
Quando sabemos que quem chega ao poder fará
com ele o que bem entender, na democracia como em qualquer outro sistema,
as cerimônias de posse se tornam inexoravelmente kitsch. E elas sempre o são
um pouco, por mais que o virtuoso dignitário que jure perante a bandeira, a
Constituição ou a Bíblia tenha a intenção
de cumprir suas promessas.
O elemento sagrado das cerimônias
políticas é kitsch em si mesmo, é o mel
que se mistura com o sangue. Sua sobrevivência é mais uma questão de propaganda do que de rotina -ou, pior ainda,
de crença-, mas uma propaganda tão
introjetada que até seus beneficiários a
consideram uma tradição sagrada.
Mais associado à arte, o kitsch acabou por saturar todas as áreas da vida moderna, como a política e a universidade
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Os mesmos que hoje querem acabar de
uma vez por todas com o Estado sentem
seu coração bater mais forte quando ouvem o hino nacional. O protocolo do
kitsch às vezes pode ser complicado. Faz
alguns anos, o Exército alemão foi convidado a participar da parada militar do 14
de julho francês, o que provocou uma
forte polêmica. Uma única pessoa, que
viu o lado kitsch da coisa, teve a perspicácia de responder: "Eu sou a favor da participação dos alemães na parada, mas
sou contra as paradas militares".
O kitsch sempre traz um efeito de anacronismo, como nos faroestes, onde
uma escaramuça entre caubóis e índios
rebeldes é invariavelmente acompanhada de música sinfônica; ou na arquitetura monumental pós-moderna, em que
um enorme arranha-céu termina nas alturas em forma de templete grego ou de
pirâmide vagamente maia ou asteca. No
kitsch em escala governamental, o olho
atento logo percebe que o que introduz o
anacronismo é a razão de Estado.
Se, com o pretexto de que o destinatário aprecia o kitsch, alguém argumenta,
porém, que a representação estatal é necessária para que os governados se identifiquem com os símbolos do governo,
podemos responder que o bom governante seria antes aquele que induzisse os
governados a aprovar ou desaprovar
seus atos racionalmente, e não a se conformar cegamente com a duvidosa retórica do Estado. Quem governa, porém,
também navega no barco que deriva para as ilhas de Pacotilha, como todo mundo. Mas com uma grande e preocupante
diferença: eles seguem convencidos de
terem o leme bem firme nas mãos.
O kitsch governamental dá emprego a
muita gente, que poderíamos chamar de
artistas de utilidade pública: dos que decoram a cidade para as festas até os que
constroem pontes e ministérios, passando por quem desenha selos, cunha medalhas de honra ao mérito ou executa os
monumentos que surgem da noite para
o dia nos cruzamentos ou nas praças.
Mas os principais artistas são os próprios dirigentes, capazes de interpretar
vários papéis, lendo textos escritos por
outros ou trocando de roupa e de comportamento conforme as circunstâncias
-férias, discurso para a nação etc.-,
sempre mediante esquemas estudados e
invariáveis. Tudo isso seria risível (e, em
pequena escala, é mesmo), mas num
mundo diferente. No nosso, essas mascaradas podem terminar em massacre.
Talvez o fenômeno kitsch mais chamativo seja a devoção do povo norte-americano por sua bandeira, uma fixação obsessiva anterior a 11 de setembro, que é
bastante curiosa quando se sabe que, nos
EUA, cada vez menos cidadãos vão às
urnas. Mas os norte-americanos põem
sua bandeira em tudo, das placas dos automóveis até os túmulos.
Os presidentes põem a mão no coração
diante da bandeira, ainda que com estilos diferentes. O gesto de Bill Clinton sugeria distensão e simplicidade, um estilo
de interpretação desdramatizada, que
era em geral o estilo de suas aparições
públicas. O de George W. Bush, ao contrário, transpira solenidade: a bandeira, a
mão no coração, os lábios cerrados, o
queixo saliente, a intensidade sagrada da
situação, nenhum dos ingredientes do
kitsch governamental foi esquecido.
Podem dizer que é puro teatro, mas,
fingida ou autêntica, essa gravidade excessiva instaura um clima de ameaça. É
bom permanecermos atentos porque,
como aconteceu tantas outras vezes,
quando se exageram os traços dessa retórica rançosa, começam a se insinuar,
impacientes e ávidas, as presas da besta.
Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino,
autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Cia. das Letras).
Tradução de Sergio Molina.
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