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A HISTÓRIA TOTAL
por Peter Burke
Ao observar a carreira de Sérgio Buarque de Holanda, é difícil resistir à impressão de que houve
duas carreiras ou até mesmo dois Sérgios, o anterior e o posterior a "Raízes do Brasil". Antes
de 1936 nós pensamos em um jovem, precocemente intelectual e articulado, mais ativo no mundo do jornalismo do que no mundo da universidade. Os interesses do
jovem Sérgio abrangiam da música à política, mas centravam-se em literatura, especialmente literatura moderna, incluindo poetas e romancistas franceses, alemães, anglo-americanos e italianos, mas também brasileiros.
Após 1936, o Sérgio acadêmico tornou-se cada vez
mais visível, o especialista em história econômica brasileira com conhecimento sem rival dos arquivos, o diretor de museu, o orientador de um grande número de
doutorandos que hoje são historiadores importantes
por mérito próprio. Caminhar por sua biblioteca, felizmente acessível na Universidade Estadual de Campinas, dá uma impressão similar: o visitante se move entre estantes devotadas à literatura, à obra de Thomas
Mann, por exemplo, e estantes devotadas à ciência social e história econômica, como à obra de Max Weber.
Comparado a seu contemporâneo (embora este o precedesse) Gilberto Freyre, cujas propensões intelectuais
eram no mínimo tão amplas quanto as dele, Sérgio parece ter mantido seus interesses em compartimentos
separados.
Mesmo assim é possível perceber certos elos entre os
diferentes interesses de Sérgio e dessa forma restaurar
algum sentido de unidade e direcionamento em sua
carreira. Um desses elos pode ser descrito como uma
preocupação com a história das civilizações. Em uma
de suas primeiras publicações, o agora famoso ensaio
"Ariel", que apareceu primeiramente na "Revista do
Brasil" em 1920 [disponível hoje em "O Espírito e a Letra", vol. 1", Sérgio se inscreveu na longa tradição de críticos da tendência brasileira de imitar outras culturas,
"o hábito de macaquear tudo quanto é estrangeiro".
Dessa vez, no entanto, o modelo favorecido não era a
França ou a Inglaterra, mas os Estados Unidos, que o
autor chama com desdém de "civilização ianque". De
acordo com esse artigo, "o nosso caminho a seguir deverá ser o mais conforme ao nosso temperamento". O
ponto é que "o utilitarismo ianque não se coaduna absolutamente com a índole do povo brasileiro, que não
tem semelhança nenhuma com a do norte-americano,
da qual é o extremo oposto".
Essa crítica aos Estados Unidos como um modelo impróprio para os brasileiros foi associada à convicção do
jovem Sérgio, expressa em seu primeiro artigo publicado, anterior a 1920, de que "o Brasil há de ter uma literatura nacional, há de atingir, mais cedo ou mais tarde, a
originalidade literária". Posteriormente, em 1920, refletindo dessa vez sobre o espírito de comprometimento
inglês, Sérgio usou o termo "mentalidade" como equivalente do que ele havia chamado "índole" ou "civilização". Foi nesse momento que o termo "mentalité" começava a ser usado na França, empregado por intelectuais tão diversos quanto Marcel Proust e Lucien Levy-Bruhl, autor de "La Mentalité Primitive" (A Mentalidade Primitiva, ed. PUF).
Ao escrever "Raízes do Brasil", as idéias de Sérgio sobre esse tópico eram ainda as mesmas, embora ele houvesse obviamente refletido sobre os problemas em escrever esse tipo de história cultural e também escutado
as palestras do grande historiador alemão Friedrich
Meinecke sobre o assunto, enquanto vivia em Berlim.
Em certos momentos (discutindo a "cordialidade", por
exemplo), Sérgio escreveu sobre "o caráter brasileiro",
em outros, sobre uma visão de mundo específica, em
outros, ainda, sobre uma distinta "civilização".
Visão do mundo
Seu conceito favorito nesse momento, entretanto, era "mentalidade". O conceito era às vezes usado em um sentido amplo ("mentalidade moderna", por exemplo), mas normalmente de modo mais preciso e específico -"mentalidade de classe",
"mentalidade de casa-grande", "mentalidade criada ao
contato de um meio patriarcal" (nesse ponto, os ecos de
"Casa Grande & Senzala" são óbvios demais para necessitarem de comentário).
Em "Visão do Paraíso", por outro lado, Sérgio Buarque colocou mais ênfase no conceito de "visão de mundo", em alemão, "Weltanschauung". Nessa época ele
havia se tornado um importante historiador profissional, ao preço de virtualmente abandonar sua prática de
crítica literária. Nesse livro, o mais literário dos estudos
históricos de Sérgio, é possível sentir o que Freud chamou de "retorno do reprimido". "Visão" foi inspirado
não por historiadores que o precederam, mas por estudiosos da literatura.
Em seu tema, o livro se assemelha a "Virgin Land"
(Terra Virgem, Harvard University Press), estudo que
Henry Nash Smith fez de imagens literárias dos EUA, ao
passo que, em seu método, o estudo dos "topoi" ou lugares-comuns, ele segue o trabalho do estudioso
PREOCUPAÇÃO COM OS ASPECTOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E RELIGIOSOS SE COMBINOU AO INTERESSE PELAS MENTALIDADES E ANTECIPOU O CONCEITO MODERNO DE 'CULTURA MATERIAL'
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alemão Ernst Robert Curtius.
A longo prazo, entretanto, o conceito que Sérgio entendeu como o mais adequando a seus propósitos não foi nem "mentalidade" nem "visão de mundo", mas
"civilização". Enquanto os alemães tradicionalmente
preferiam utilizar o termo "Kultur", os franceses tendiam a falar em "civilisation". Este termo foi favorecido
pelos principais historiadores franceses desde a época
de François Guizot em meados do século 19 até aquela
de Lucien Febvre e Fernand Braudel, um século depois.
Manifesto editorial
Em 1953, uma "Histoire Générale de la Civilisation", em vários volumes, começou
a aparecer na França, editada por Maurice Crouzet, e alguns anos depois a série foi traduzida e publicada no
Brasil ["História Geral das Civilizações", lançada pela
ed. Bertrand Brasil". Como a "Histoire de la Vie Privée"
["História da Vida Privada", lançada no Brasil pela Cia.
das Letras" uma geração depois, a tradução inspirou
uma imitação. No primeiro caso, a imitação assumiu a
forma de uma "História Geral da Civilização Brasileira", da qual Sérgio foi o editor-geral.
Em uma série desse gênero é costumeiro que o primeiro volume comece com algum tipo de manifesto
editorial. Crouzet, por exemplo, abriu a "Histoire Générale de la Civilisation" com uma referência a Febvre,
destacando a pluralidade de civilizações e definindo civilização de forma a incluir idéias políticas e instituições, cultura material, tecnologia, forças de produção,
relações sociais, religião e artes. O manifesto do próprio
Sérgio em seu prefácio para a "História Geral" declarava que "numa história da "civilização" espera-se que, ao
lado de questões mais estritamente políticas e, se preciso, um pouco em detrimento delas, se desse igual ênfase
a outros aspectos de nosso desenvolvimento".
Em outras palavras, ele advogava a "história total",
que incluiria todos ou ao menos diversos aspectos da
atividade humana. Entre os aspectos discutidos em capítulos separados do primeiro volume da série estavam
"Vida Espiritual" e "Letras, Artes, Ciências", um longo
capítulo que também incluía uma seção sobre música.
Resumindo, a visão de história de Sérgio era uma visão ampla, e em seu próprio trabalho ele era muito mais do que um historiador econômico do Brasil. Seu interesse precoce no caráter nacional gradualmente se desenvolveu e se refinou em uma preocupação com a história das mentalidades, a história das visões de mundo e, da forma mais ampla de todas, a história da civilização, incluindo tudo aquilo que hoje é conhecido por "cultura material". O jovem crítico literário e o historiador de meia-idade não estavam tão distantes afinal.
Peter Burke é historiador inglês, autor de "História e Teoria Social"
(ed. Unesp) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria), entre
outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Victor Aiello Tsu.
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