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Ponto de fuga
Civilização e barbárie
Jorge Coli
especial para a Folha
O breve romance do húngaro Sándor Márai, "Veredicto
em Canudos" (Cia. das Letras), é uma reação a "Os Sertões" de Euclides da Cunha. Ao ler a obra brasileira numa tradução para o inglês, Márai sofreu um impacto e
escreveu para ela uma espécie de coda literária. Diz Márai: "A lembrança da leitura era inquietadora. Como se
eu tivesse estado no Brasil". "Veredicto em Canudos",
autêntico e vibrante, foi servido por seu tradutor, Paulo
Schiller, que, em português, compôs um texto impecável e de notável qualidade literária.
Márai explora o impasse sobre o qual Euclides da Cunha, no seu rigor analítico, fez repousar a angústia essencial de "Os Sertões": a impossibilidade de opor civilização e barbárie. A penúltima página, onde a épica de
"Os Sertões" se afunila no cadáver do Conselheiro, invade o livro de Márai como uma obsessão. Nela, o corpo meio apodrecido é desenterrado, fotografado, descrito numa ata, comprovando que o líder mítico de fato
morrera e não podia, assim, alimentar expectativas de
um retorno. Mais ainda, a cabeça é decepada.
Prossegue Euclides da Cunha: "Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele
crânio". Conclui Márai: "E porque naquele momento
não havia mais ninguém a ser morto no acampamento,
descontraídos, em meio a risadas, satisfeitos começamos a nos aprontar também para deixar Canudos com
os companheiros de luta -deixar o sertão para um outro mundo, belo, onde havia liberdade, igualdade, fraternidade".
Sangue - Sándor Márai desdobra, no seu "Veredicto em
Canudos", as cenas assustadoras descritas por Euclides,
em que o soldados degolavam ou destripavam os prisioneiros. Primeiro, impunham um "viva à República",
poucas vezes obedecido. Depois, rasgavam a garganta
ou enfiavam o facão no baixo-ventre. "Essas covardias
repugnantes", conta "Os Sertões", eram "tácita e explicitamente sancionadas pelos chefes militares". Em nome da república, da civilização, da ordem.
Reverência - Em "Veredicto em Canudos", o marechal
Bittencourt, vencedor dos sertanejos, num dado momento, discursa: "A grande tarefa da democracia será acabar com a falta de cultura, berço de toda maldade
humana". Uma voz replica: "A democracia deu início à
extinção da ausência de cultura com a extinção dos homens incultos". Indignado, o marechal aponta para fora, para a noite, na direção do arraial de Canudos: "Sabe o que é aquilo na escuridão?". O mesmo personagem retruca: "Sei. O Brasil". Prepara-se para se retirar, mas o marechal o detém, perguntado por seu nome. "Euclides da Cunha", ele responde. Nessa passagem, Márai presta
uma admirável homenagem ao seu inspirador.
Sentido - Um crítico francês -Gilles Lapouge- escreveu há tempos sobre "Os Sertões", no jornal "Le Monde": "À medida que (o livro) se escreve, queima-se a si próprio. Esse livro arma seu próprio auto-de-fé".
Euclides da Cunha, republicano, espírito positivo e
científico, imbuído de teorias racistas, que hoje (esperemos) estejam caducas e mortas, tenta compreender um
acontecimento excepcional pela descrição e pela análise. Aí está seu rigor. Não é fiel às idéias, que continuam
em sua cabeça. É fiel à escrita, que brota da mão. É fiel ao
estilo, ao mesmo tempo épico e preciso. A frase forte e
rigorosa trouxe-lhe a força e o rigor da análise. Em seu
livro, o fluxo da escrita conduz o fluxo interpretativo. As
palavras subvertem em permanência, pois nelas se encontra a inteligência analítica. A palavra que ilumina se
incendeia no particular. Contradiz a generalidade e,
com frequência, se contradiz a si própria, anulando
pressupostos, condenando duas barbáries opostas,
misticismo e modernidade, fazendo se chocarem e se
aniquilarem razão e loucura. Euclides da Cunha afirma
axiomas, mas sua escrita os desmente, denunciando, no
seu percurso detalhado, a estreiteza e falsidade dos
pressupostos teóricos, das certezas convencidas, das
verdades proclamadas.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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