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+ sociedade
Estratégias dos Estados se enfraquecem e abrem espaço à "política da vida",
que encoraja os cidadãos a buscar soluções pessoais a problemas de origem coletiva
Resíduos modernos das nações
Zygmunt Bauman
especial para o "Le Monde"
Comecemos pelo processo de
preenchimento do planeta: nosso planeta está hoje repleto. Não
se trata de uma constatação de
geografia física nem mesmo humana. É
uma proposição sociológica. Em termos
de espaço físico e de extensão da coabitação humana, o planeta está longe de estar
repleto. Dizer que o planeta está repleto é
simplesmente dizer que não há mais espaço sem dono, "no man's land", territórios que possam ser tratados como vazios de toda presença humana por estarem desprovidos de administração soberana e, portanto, abertos à colonização e
ao povoamento. Durante uma grande
parte da história moderna, esses territórios, hoje ausentes, desempenharam um
papel crucial, o papel de depósitos para
os refugos e resíduos humanos produzidos em quantidades sempre crescentes
nas partes do mundo envolvidas no processo de "modernização".
Produção de desperdício
A produção de resíduos humanos ou, mais
exatamente, de humanos supérfluos e
desperdiçados é um elemento inevitável
da modernidade, dessa condição social
que se caracteriza por uma modernização perpétua e compulsiva, obsessiva e
dependente. A produção de desperdício
é um efeito indissociável da construção
da ordem (pois cada tipo de ordem priva
certas partes da população existente de
seu lugar legítimo, definindo-as como
"inúteis", "incompetentes", "inadaptáveis" ou "indesejáveis") e do progresso
econômico que não pode se perpetuar
sem uma desvalorização dos modos que
permitiam outrora, mas hoje não mais,
"ganhar a vida", privando assim os que
os praticam dos meios de subsistência.
No entanto, durante um longo período
da história moderna, vastas regiões do
globo escaparam, completa ou parcialmente, às pressões da modernização.
Diante dos setores modernizados do
globo, esses territórios ("pré-modernos", "subdesenvolvidos", "atrasados")
tenderam a ser considerados e tratados
como a destinação natural para os seres
humanos "supérfluos" nas regiões mais
desenvolvidas do globo, como depósitos
manifestos para os resíduos humanos,
para o desperdício da modernização.
Planeta cheio
A eliminação desses
resíduos humanos nas regiões "em via
de modernização" foi o sentido mais
profundo da colonização e das conquistas imperialistas, que a limitação do "desenvolvimento" a uma parte do planeta
tornou possível e, na verdade, inevitável.
O fato de os processos de modernização
ficarem limitados ao âmbito territorial
permitiu à parte moderna do globo buscar e encontrar soluções externas globais
a problemas internos de superpopulação
produzidos localmente.
Essa situação durou enquanto o modo
moderno de existência permaneceu como privilégio de apenas algumas regiões
do mundo. Mas hoje a modernidade se
tornou, como previsto, condição universal ou quase universal da humanidade, e
a produção de resíduos humanos generalizou-se em praticamente todo o globo. Logo, não há mais saídas globais para
os excedentes locais, ao mesmo tempo
em que todas as regiões (inclusive as
mais fortemente modernizadas) devem
sofrer as consequências do triunfo mundial da modernidade: todas se vêem confrontadas à necessidade de buscar desesperadamente soluções locais para problemas produzidos de maneira global.
Em suma, o preenchimento do planeta, fenômeno novo e sem precedente, representa essencialmente uma crise aguda da indústria de tratamento dos resíduos humanos, hoje carente de depósitos e instrumentos de reciclagem, enquanto a produção desses resíduos prossegue sem esmorecer e aumenta rapidamente de volume.
Uma outra tendência importante é o
fim da era do espaço. Também aqui,
mais uma vez, uma ressalva é necessária.
O fim da era do espaço não significa que
o espaço não conta mais. A importância
do espaço físico praticamente não evolui, mas esse processo está associado a
uma acentuação brutal da significação
do território, do local, do lugar. Ao falar
do fim da era do espaço, estou me referindo à nova extraterritorialidade do poder e à substituição do engajamento territorial pela mobilidade como fator estratégico decisivo na luta pelo poder.
Na hierarquia global que se manifesta,
reinam os que menos dependem do espaço, os menos vinculados a um lugar e
com mais liberdade de se deslocar, de se
transferir. No "espaço dos fluxos" em
que se inscrevem e funcionam os poderes globais, são a velocidade de movimento e a facilidade de se descomprometer e de escapar, e não o tamanho das
possessões territoriais, que importam. O
reduto territorial retarda o movimento
ou mesmo exclui sua possibilidade, portanto não é mais um trunfo, mas um fardo e uma desvantagem.
Fronteiras permeáveis
A eventualidade de se vincular a um território, de
assumir responsabilidades a longo prazo
por um lugar fixo e imóvel, deve ser evitada a todo custo, e os atores principais e
mais poderosos de hoje fazem o que podem para evitá-lo. Os novos impérios
não são deste mundo, não pertencem à
realidade terrestre e geográfica, ao "espaço dos lugares".
Por outro lado, os lugares perderam
sua capacidade de proteção. A época das
linhas Maginot ou Siegfried está terminada. Prender-se a um local, por mais
hermético e fortificado que seja, não é
mais uma garantia de segurança. As
fronteiras são eminentemente permeáveis. O poder fluido não respeita os obstáculos; ele se infiltra pelos muros mais
espessos, passa facilmente por milhares
de fendas, frestas e rachaduras, por mais
finas que sejam. Não há vedação capaz
de tapar os buracos e de impedir as fugas.
É nessas condições desfavoráveis que
as forças estatais, separadas do fluxo global, fixas e imobilizadas por sua soberania e suas responsabilidades territoriais,
devem buscar soluções globais para problemas produzidos em nível mundial.
Esses problemas são gerados no "espaço
dos fluxos", mas devem ser abordados e
tratados no "espaço dos lugares". A significação nova do lugar nasce, se alimenta e se consolida perpetuamente nessa
nova condição global.
Uma terceira tendência deriva das outras duas. Depois de cerca de dois séculos
de casamento, o poder e a política, instalados alegremente no quadro do Estado-nação moderno, parecem tender ao divórcio. Os dois parceiros olham em direções opostas: um se sente desconfortável
no domicílio partilhado, e o outro está
cada vez mais contrariado pelas prolongadas ausências do parceiro.
Forças do mercado
Tendo se mudado para um andar mais elevado, o poder bloqueou a escada e colocou guardas
armados diante do elevador.
A política, abandonada no apartamento, teve barrado o acesso ao novo domicílio do poder, que suprimiu seu nome
da lista telefônica. Privada da parceria
com o poder, fonte antiga de sua força e
confiança, a política deve conservar o
sorriso, aceitar a sorte, tentando em vão
ocultar sua impotência.
Outros residentes do antigo lar do poder e da política também abandonam a
casa; privada de poder, a política não
consegue vigiar eficazmente a saída.
Aliás, mesmo se tivesse meios para isso,
não o faria: esses residentes turbulentos
causam muitos problemas. A política do
Estado ou da nação ficaria feliz de ver a
maior parte deles se instalar fora de seu
domínio. Ela os importuna e os incita a
partir por meio de estratégias diversas
batizadas de "desregulação", "privatização" ou "princípio de subsidiariedade".
A maior parte das funções que a política executava é agora concedida às forças
do mercado e ao domínio novo da "política da vida", essa política que encoraja
os cidadãos dos Estados-nações a buscar
soluções pessoais a problemas de origem
social. O poder é livre para percorrer "o
espaço global dos fluxos" sem prestar reconhecimento, a não ser formal, às antigas formas de controle político, enquanto a política, privada de todo poder, pode
apenas observar, desditosa e impotente,
suas facécias. O máximo que ela pode esperar é atrair as boas graças dos poderes
extraterritoriais, ao mesmo tempo em
que dirige seu interesse para outras soberanias igualmente territoriais.
Zygmunt Bauman é professor emérito de sociologia nas universidades de Varsóvia (Polônia) e Leeds (Reino Unido). É autor de "Modernidade Líquida" (Jorge Zahar), entre outros livros. Tradução de Paulo Neves.
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