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João José Reis relança "Rebelião Escrava no Brasil"
Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha
Em abril de 1835, um periódico
norte-americano, atento aos embates que a escravidão vinha provocando no continente, noticiou:
"Na manhã de 25 de janeiro, toda a cidade da Bahia (Salvador) e sua vizinhança
foi lançada a um estado da maior excitação em consequência de uma insurreição de escravos da nação nagô (....)". A
"insurreição" referida pelo jornalista estadunidense tornar-se-ia conhecida como a Revolta dos Malês, e suas causas e
desdobramentos mereceram, em solo
nacional, não somente a pronta atenção
da imprensa e das autoridades coetâneas, como ainda, com o passar do tempo, um número razoável de análises e comentários de um amplo leque de estudiosos da escravidão no Brasil.
Em 1986, em pleno clima de comemorações do centenário da libertação dos
escravos -período que se mostrou bastante profícuo para a historiografia da
escravidão-, a constantemente lembrada, mas nem sempre bem compreendida, revolta foi objeto de um livro, se não
definitivo, pois isso não existe em história, ao menos incontornável para os pesquisadores da questão negra: "Rebelião
Escrava no Brasil - A História do Levante
dos Malês em 1835", do historiador João
José Reis. A obra, que desde 1987 não recebia uma nova edição em língua portuguesa, acaba de ser reeditada pela Companhia das Letras, numa versão muitíssimo ampliada (cerca de 300 páginas a
mais), que traz um volume ainda maior
de documentação, capítulos novos e
alargados, reinterpretações de pontos
polêmicos e, sobretudo, como pondera o
autor, argumentações mais "calibradas",
produto de uma década e meia de reflexão sobre o tema.
Para os que não conheceram a versão
anterior, "Rebelião..." procura, lançando
mão de uma vasta documentação de arquivos, retraçar a história do levante de
1835 a partir da perspectiva dos seus participantes, os tais malês do título, isto é,
escravos africanos islamizados, sobretudo da etnia nagô. Para alcançar tal meta,
Reis, além, é claro, de descrever minuciosamente o levante, sua repressão e
seus desdobramentos, conduz o leitor
por um verdadeiro "passeio etnográfico"
pela Salvador das primeiras décadas do
Oitocentos, especialmente pelo mundo
negro da urbe. Deparamos, ao longo do
percurso, com uma cidade submetida a
uma rigorosa crise econômica, politicamente abalada pelas tensões que se seguiram à Independência, marcada por
enormes desigualdades sociais e com um
altíssimo contingente de negros (escravos e libertos) trazidos da África. Deparamos, também, com uma Salvador que
foi palco, entre 1807 e 1831, de sucessivas
revoltas negras, nas quais os africanos islamizados desempenharam um papel de
destaque e colaboraram para criar aquilo
que o autor denomina uma "tradição de
audácia" do escravo baiano.
Traçado esse cenário de crise e tensão,
Reis leva, então, o leitor aos meandros do
cotidiano daquela parcela negra da população baiana que participou da revolta, descrevendo seus variados vínculos
étnicos -etnias adaptadas ao Novo
Mundo-, religiosos -uma religiosidade também moldada pelas condições locais- e sociais. Dessa complexa e múltipla teia de relações, aqui muito sumariamente repassada, o historiador baiano
procura detectar o que "deu sentido" à
revolta de 1835, uma revolta na qual, como exaustivamente demonstra ao longo
do livro, encontramos uma singular convergência de identidades étnica (nagôs),
religiosa (muçulmanos) e de classe (trabalhadores urbanos), convergência que
acabou por conferir ao movimento uma
certa "inclinação predominante".
"Rebelião...", em suma, mais do que
narrar magistralmente a história de um
levante escravo, oferece-nos um detalhado quadro da sociabilidade negra no período e dos modos inventados por escravos e libertos para sobreviver numa sociedade escravocrata e, ao mesmo tempo, contrapor-se aos seus ditames.
Jean Marcel Carvalho França é professor de história da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Franca). É autor de, entre outros, "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda).
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