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Em "Middlesex", que sai no Brasil até o fim do mês, Jeffrey Eugenides ironiza a mitologia ao narrar a história de um hermafrodita vivendo nos EUA do século 20
A epopéia moderna da recriação
Valter José Maria Filho
especial para a Folha
Faire la différence." Essa expressão
o filósofo francês Gilles Deleuze
(1925-95) emprestou de alguma
campanha publicitária para adotá-la como modelo conceitual na sua obra
"Diferença e Repetição". Fazer a diferença, segundo ele, é inserir o novo (o diferente) na repetição. De tal modo que, à
medida que se repete, a diferença vai
aparecendo.
Desenvolver a diferença na repetição é
o que fez o romancista norte-americano
Jeffrey Eugenides em "Middlesex" -a
história de Calliope Helen Stephanides,
um hermafrodita greco-americano que
até os 14 anos viveu como garota, passando depois a ser um rapaz, trocando o
nome para Cal Stephanides.
Desde "As Metamorfoses" de Ovídio
(apenas para citar uma obra da Antiguidade clássica), passando por Balzac, em
"Sarrazine" (objeto de análise de Roland
Barthes em "S/Z"), e por Virginia Woolf,
em "Orlando", que o hermafroditismo é
presença habitual no mundo mítico,
poético e romanesco da humanidade.
Consciente dessa pesada e labiríntica
tradição, Jeffrey Eugenides faz esse hermafrodita deixar de ser cintilante e imaginário verbo para fazê-lo habitar entre
nós. Não caindo na armadilha de criar
mais uma obra de realismo mágico e
muito menos uma obra de erotismo apelativo e bizarro, ficando também longe
da sátira impiedosa.
Festival de gêneros
Para começar a
caracterizar esse hermafrodita pode-se
usar a linguagem emprestada das campanhas publicitárias, dizendo que "esse
hermafrodita fala aos corações". Mesmo
que a parcelo de sentimentalismo seja
bem dosada, "Middlesex" segue a seu
modo a tradição de Charles Dickens
("Oliver Twist"), Georges Sand ("François le Champi"), cujos personagens são
jovens vivendo com elevação moral seus
problemas e em busca do amadurecimento. O que coloca a obra também como fazendo parte do gênero "Bildungsroman", ou seja, romance que conta os
anos de formação do protagonista. Portanto, temos aqui um festival de gêneros
e estilos equilibrados com muito talento
e bom humor.
A própria protagonista é a narradora
de suas aventuras e sua saga familiar. Começa pelos fatos que precedem o seu primeiro nascimento, em 1960, e o segundo
nascimento, em agosto de 1974 -quando se torna rapaz, adotando o nome
masculino de Cal Stephanides. E faz a
narrativa retornar aos anos 20, época dos
seus avós Desdemona e Lefty, emigrantes gregos que viviam na Turquia até esse
país ser invadido pelas tropas gregas,
obrigando-os a fugir para a Europa.
Quando, então, os dois aproveitam o
fato de serem desconhecidos por lá para
se casarem, de modo que ninguém fica
sabendo que ambos eram irmãos legítimos vivendo uma peculiar "love story".
Emigrando para os Estados Unidos, o
casal vai morar em Detroit, na casa de
Sourmelina, prima lésbica de Desdemona casada com Jimmy Zizmo, um traficante abstêmio.
Numa noite, os dois casais vão ao teatro para assistir a uma versão erótica do
mito do Minotauro. A atmosfera sexual
da apresentação inspira os casais a terem
relações sexuais, que resultam em duas
crianças, Tessie e Milton, que serão os
pais de Calliope e do seu irmão Capítulo
Onze. Temos assim a família Stephanides, digna de figurar em qualquer trama
neobarroca de Severo Sarduy [escritor
cubano, 1937-93].
Os Stephanides atravessarão todos os
momentos retumbantes da história contemporânea americana: a grande depressão de 29, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra do Vietnã, os terríveis distúrbios raciais em Detroit, em 67, o caso
Watergate e a crise de energia. Chega a
encontrar a fortuna, quando Milton (pai
de Calliope) funda uma bem-sucedida
cadeia de lanchonetes, a Hot Dogs Hercules, usando os lucros para adquirir
Middlesex.
Uma propriedade cuja descrição dá a
exata imagem da escritura do romance.
Um lugar estranho, sem portas, sem
compromisso com a vida prática, contendo escadas que não levam a lugar nenhum. Na verdade, um local futurista à
moda das construções de Flash Gordon,
que se ergue como um desajeitado e labiríntico museu de novidades.
No meio de tudo isso está Calliope vivendo em êxtase, não no sentido meramente sexual, mas, à medida que sofre
mutações, metamorfoses em seu ser, que
a fazem sair de si mesma. Principalmente quando seu corpo passa a viver o que
Eugenides chama de "folia dionisíaca",
em que a menina apolínea se transforma
em rapagão de pernas grossas e narigão de sátiro.
Isso ocorre quando Calliope, a musa
das epopéias, se transforma em Cal,
um funcionário do Departamento de
Estado norte-americano que vive
uma "love story" bem-sucedida com
uma fotógrafa japonesa. Saboreando
o biscoito irônico da nova mutação e
do seu último deslocamento: a de ser
o patriarca da família Stephanides
que continuará a linhagem.
É nisso que o hermafrodita de Jeffrey Eugenides faz a diferença. Sua
origem está na assonância ovidiana
"ex ovo omnia" (tudo sai do ovo), isto
é, em Ovídio, em "As Metamorfoses";
a história da criação. Mas epicamente
irá sofrendo mutações até chegar à capacidade de gerar e criar.
Hermafrodita francês
Jeffrey Eugenides contou em uma entrevista
que a história desta epopéia greco-americana começou quando ele leu a
tradução para o inglês de "Herculine
Barbin", as memórias de um hermafrodita francês do século 19 encontradas -e prefaciadas- por Michel
Foucault (1926-84) nos arquivos do
Departamento Francês de Higiene
Pública. Foi o que o levou a escrever a
história de um hermafrodita real,
consultando as pesquisas médicas sobre o assunto. Daí esse sabor naturalista meio Émile Zola ("Germinal")
subvertido.
"Middlesex" é a segunda obra do
autor. A primeira foi o bem-sucedido
"As Virgens Suicidas" [ed. Rocco],
publicado em 1993, narrando as perplexidades de um grupo de garotos
horrorizados com os suicídios sucessivos de cinco irmãs virgens. Obra cuja versão cinematográfica foi dirigida
por Sofia Coppola.
Espera-se também que Calliope
chegue às telas pelas mãos de algum
diretor da nova geração, do tipo de
Paul Thomas Anderson ("Magnólia"). Estrelas para o papel principal
abundam. Hillary Swank, Jennifer
Garner (da série "Alias"), Tilda Swinton (que encarnou o Orlando de Virginia Woolf nas telas) e até a magnífica Cate Blanchet e a maravilhosa Kirsten Dunst, todas representantes da nossa época atual, quando estamos
assistindo ao triunfo da diferença. Isso é "Middlesex".
Valter José Maria Filho, 39, realiza pós-doutorado em filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e é diretor
de vídeos eróticos.
Middlesex
568 págs., preço não definido
de Jeffrey Eugenides. Tradução de Paulo Reis. Ed.
Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 4º andar, CEP 20011-040, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2507-2000).
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