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Ensaísta analisa números recentes das publicações "Inimigo Rumor", "Sibila",
"Coyote", Ácaro" e "Et Cetera" e discute o boom de revistas literárias e culturais no Brasil
A luta da palavra com o espaço em branco
Kathrin H. Rosenfield
especial para a Folha
Recebo cinco revistas de poesia
-"Inimigo Rumor" (RJ/Lisboa), "Sibila" (SP/Brasília/Nova York), "Coyote" (Londrina-PR), "Ácaro" (SP) e "Et Cetera" (Curitiba-PR). Duas delas são recentíssimas: "Et Cetera" é o número zero,
"Ácaro", o número dois. Sem dúvida,
ainda um número restrito de revistas
literárias e culturais, uma amostra pequena se lembrarmos que nos últimos anos elas têm pipocado.
O fenômeno em si mesmo mereceria alguma investigação. Revistas literárias são fundadas ano a ano -há
uma verdadeira inflação do gênero.
Algumas delas têm produzido algumas comoções, como a iconoclasta
"Rascunho", outras levam uma existência mais plácida, como a "Continente", de Pernambuco.
"Ácaro" (nš 2, R$ 10, tel. 0/xx/11/
3816-6777) - não deixa de ter um toque de ironia resenhar no Mais! uma
revista que contém o suplemento
"menas". Nesse minifolheto de 20 x
20 cm, Marilyn Monroe anuncia um
"concurso de literatura confessional
num cupom de delegacia", sob o lema
de Paul Valéry, que disse: "Escrever
nada mais é que preencher espaços
em branco". Com pós-moderna derrisão, defende-se a tese "Onde houver
celulose virgem, haverá literatura" .
Dá o tom a farsa "O Bacanal" e o "Incidente Noir" -uma "minissérie em
quantos capítulos a gente tiver grana
pra fazer" que se desdobra na parte
séria das referências editoriais com o
apelo: "Empresários progressistas:
anunciem no "Ácaro'".
Muitas crônicas que reprocessam
em forma de literatura os clichês da
comunicação de massa (de Rita Hayworth a Xuxa). Uma parte da revista é
dedicada à poesia -poetas brasileiros e traduções. E -de repente,
quando menos se espera- um artigo
"sério" e esclarecedor de Paulo
Henriques Britto sobre as dificuldades que representam, para o escritor e
o tradutor, as diferenças entre o português falado e o escrito, além de charadas e uma entrevista com Neslon
-uma ficção que capta a realidade de
um anônimo azarado que dá a entrevista
enquanto sua casa é inundada pelas chuvas torrenciais, cujos estragos urbanos
regularmente ocupam o noticiário.
Na revista "Coyote" (nš 5, R$ 10, tel. 0/
xx/21/3731-3281) fico seduzida, de imediato, pelas palavras lapidares de Luis
Dolhnikoff: "O que estou procurando
com minha poesia? Nada. Jamais quis ser
poeta. Sequer gosto desta palavra. Pessoalmente preferiria uma atividade mais
pragmática... não procuro nada, mas encontro quase tudo. O resto é o resto".
Isso já vale um poema e quase faz esquecer que na mesma página há também
os versos publicados: ""Drósera'/ dissera
o pobre poeta/ do que se chama boceta/
em bom português". Há também uma
irônica sequência de fotos de esculturas
fúnebres em poses extático-eróticas e
uma tradução de poemas de Po Chü-I,
poeta chinês e crítico da política dos imperadores do período Tang (772-846).
Jacques Roubaud é apresentado sob o
lema de Rimbaud, "é preciso ser absolutamente moderno", e também como explorador das fronteiras da lógica. Co-fundador do grupo Oulipo ("Ouvroir de
Littérature Potentielle", isto é, um
workshop de literatura potencial), esse
matemático empenhou-se com outros
membros (Queneau, Perec ou Italo Calvino) em dissolver as formas cristalizadas, nem que fosse ao custo de fórmulas
aritméticas (por exemplo, o S-7: substituição de um substantivo pelo sétimo
que segue no dicionário).
Capa de grife
Um esforço semelhante de explorar os potenciais insuspeitados da linguagem constitui, sem
dúvida, um dos vetores capitais da poesia atual (e das revistas de poesia). A diferença é que os oulipianos franceses se
sentiam ainda interpelados pelo pensamento sistemático (filosofia, lógica, matemática) -traço cada vez mais ausente
nas iniciativas poéticas recentes.
Estas convergem mais para o pólo do
engajamento. Em uma entrevista, Claudio Daniel entende sua própria poesia
como "partitura do bizarro" e como uma
reflexão crítica "sobre a lógica do poder
estabelecido".
Centrada em um tema, "Inimigo Rumor" (nš 14, R$ 25, tel. 0/xx/21/ 2540-0037) distancia-se em vários sentidos da
busca de diversidade das outras quatro
revistas. Já de longe se destaca a bela capa, design italiano que faz pensar, imediatamente, na "grife" Cosac & Naify.
Além do aspecto gráfico, moderníssimo, o belo volume pesa na mão, suas folhas abrindo-se como aqueles antigos
volumes artesanais feitos para sobreviver ao tempo. Essa é a sua aparência gráfica, mas, quanto às suas páginas, são ao
todo 240 -e bem cheias-, um livro robusto como uma antologia acadêmica.
Nada de papel cuché. Nenhuma economia de espaço privilegiando os brancos.
Sobre as folhas de boa qualidade, mas
sem luxo e sem ilustrações, muita informação: mais de cem autores apresentando poemas em prosa. São na maioria
brasileiros, mas há também portugueses
e espanhóis, além de estrangeiros, argentinos, franceses, japoneses e gregos (o já
bem conhecido Giórgios Seféris, Kiki Dimoulá e Nikos Kavvadias). Parece, à primeira vista, uma antologia. Mas há também ensaios críticos que tematizam as
relações entre poesia e prosa e questionários sobre o suporte material da poesia-literatura, o livro.
O editorial situa o poema em prosa referindo-se a Baudelaire, um dos ilustres
exploradores da tensão entre o orgânico
e o fragmentar. Poderia também ter
mencionado outras etapas da história
desse gênero que aparece, por exemplo,
em Mallarmé, como uma válvula de escape, uma prática que alivia as excessivas
exigências formais que o poeta enfrenta
nos seus outros trabalhos. De todo modo, o editorial coloca como problema para a crítica atual a questão de saber qual é
o lugar que ocupa o poema em prosa numa época que se desvinculou das formas
para as quais ele constituía o contrapeso.
"Sibila - Revista de Poesia e Cultura"
(ano 3, nš 4, R$ 25, tel. 0/ xx/11/4612-9666) preenche um espaço muito prezado na tradição política e cultural, artística e literária brasileira desde o modernismo. Fiel a essa tradição libertária, inicia
com um "Desmanifesto" pela abertura,
pela multiplicidade e pela elaboração de
perspectivas que visam a agregar e incluir o heterogêneo na cultura multifacetada brasileira e mundial.
Por isso é favorável ao "poder da invenção" e "da criação de alternativas, para além das idéias de oposição e resistência" (entrevista com Michael Hardt). Por
isso se inscreve claramente no marco da
intelectualidade de esquerda que levou
ao restabelecimento da democracia no
Brasil. O futuro mostrará se o entusiasmo com o modelo político-cultural do
Rio Grande do Sul (que os entrevistadores e o entrevistado devem ter observado
a uma distância que filtrou os traços totalitários da política cultural do PT gaúcho) confirmará a idéia de que Porto
Alegre "é um evento que não só imagina
alternativas em conjunto, mas que apresenta um tipo de coerência... global entre
os vários movimentos e assuntos sociais". Diante do desafio da desagregação
das antigas categorias sociológicas e políticas (o "popular-nacional" cedendo à
"multidão"), a poesia é vista como podendo "agir como ponto de resistência...
e criar alternativas".
Bem ancorados na tradição do engajamento que vai de Brecht a Jean Genet e
dos poetas beats às vanguardas brasileiras, "Sibila" e seu entrevistado, Michael
Hardt [professor de literatura na Universidade Duke (EUA) e co-autor, com Antonio Negri, de "Império"], atribuem à
arte e à cultura um papel importante e
nobre, apesar de "uma espécie de desorientação de muitos artistas e críticos da
arte literária pela desintegração dessas
várias fronteiras [ideológicas, sociológicas e tecnológicas]".
Leque variado
Sob o signo dos ideais emancipatórios e do despojamento visual (não há intervenções gráficas na revista nem fotografias nem ilustrações),
"Sibila" oferece ao leitor um leque diversificado de literaturas: poesia nacional e
estrangeira, debates sobre poesia e tradução, música e arquitetura, projetos artísticos e edição. Destaquemos, entre
muitos outros artigos interessantes, a
instigante apresentação de Robert Creeley em "Da Poesia da Experiência à Experiência da Poesia" e a conversa de Régis Bonvicino com Douglas Messerli.
"Et Cetera - Literatura & Arte" (nš zero, R$ 25, tel. 0/xx/41/264-9463). Num
elegante formato quase quadrado (27 x
24 cm), esta revista atrai pela sua elaboração gráfica. Um ambíguo sorriso de
fauno ou ninfa capta e seduz instantaneamente o olhar, que desliza de página
em página passando por inúmeras ilustrações e fotos.
O editorial, jocoso-sério, apresenta-se,
"entre outras coisas", "sem esperança
nem temor" -o que é um excelente lema para uma revista de literatura e arte
no Brasil. Alinha, com aliterações e com
nexos ricos, prolíficos, talvez proliferantes, as palavras-chave que fornecem os
múltiplos vetores do programa editorial:
"Palavras são invocações ao amarelo (girassóis), loucura de van gogh, mas com
cubos e esquadros..., pois palavras são
jardins de incitação..., pois palavras são
desafios, contendas e delendas, que recusam o ordinário e sonham o extraordinário, redesenham novas atlântidas e
descartam os fiapos do fácil, do fétido e
do fútil, pois palavras são mantras, sopros e mandalas, cantos sagrados, encantos e segredos...".
Morte da poesia
No centro das 200 páginas da revista está a enquete "A Poesia Está Morta, mas Juro que Não Fui Eu", em que se encontra (entre outros
posicionamentos) a irônica estocada: "A
poesia não morreu, mas todo mundo virou poeta, e todo poeta clone de outro
clone. Será que a morte é apenas a clonagem da vida?". E em volta disso tudo há
poemas visuais, séries fotográficas, poesia atual, além de inéditos de poetas já
consagrados (Borges, Manuel de Barros), curiosidades pantagruélicas como
"O Elogio da Bosta", os últimos poemas
de Arnaldo Antunes, cheios de inovações, que falam de comunicação moderna, de dimensões novas da sonoridade e
da visualidade.
Os críticos são defendidos em boa hora
por Jamil Snege: "Você já imaginou se
não existissem esses abnegados, dispostos a separar o joio do trigo, que imensa
quantidade de besteiras correríamos o
risco de ler?". Impossível listar toda a diversidade de artigos nacionais e internacionais que vão da poesia musical e plástica do cubano José Kozer a uma das letras de Kurt Cobain, do grupo de rock
Nirvana ("Jesus don't want me for a sunbeam") ou fragmentos de "Dry Rust", de
Moacir Amâncio.
Kathrin H. Rosenfield leciona teoria literária na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, autora de "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (L&PM).
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