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Ponto de fuga
Onde o espaço se torna tempo
"Parsifal" não apenas gravita em torno de obsessões universais, como o desejo, a culpa, o poder, o masculino e o feminino: enleou-se de maneira inextricável com a história alemã
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
O
s cavaleiros do Graal
são castos, isto é, não
podem transar, salvo
em certas exceções obscuras
não explicadas no libreto da
ópera.
Estão em declínio porque
Amfortas, seu rei, cedeu às tentações da carne e ficou marcado por uma ferida sem cura.
Não consegue mais presidir
ao ritual que expõe a taça sagrada, o Graal, onde permanece o sangue de Cristo, porque
suas dores atrozes aumentam
durante a cerimônia.
Surge um novo líder, Parsifal, o "puro louco", que resistiu
às seduções de umas moças
muito desenvoltas. Elas são as
agentes de Klingsor, ex-cavaleiro que se castrara a si próprio buscando, assim, eliminar
seus desejos libidinosos.
Klingsor ignorava, porém,
que castração não valia como
controle dos apetites. Expulso
da comunidade dos bons, assume o papel do supervilão, cria
um paraíso de mulheres-flores,
especialistas em desviar gente
boa para o mau caminho.
No final, purificado, Parsifal
assume o ritual do cálice sagrado que iluminará para sempre
a humanidade.
"Parsifal", a última obra de
Wagner, data de 1882. O compositor havia construído, em
Bayreuth, na Alemanha, um
grande teatro com características peculiares. Determinou
que "Parsifal" fosse unicamente representada ali, o que aconteceu até 1913, quando os direitos autorais caducaram.
Drácula
"Parsifal" foi a ópera preferida de Hitler, que devia se imaginar como o redentor de uma
Alemanha em decadência.
Himmler construiu para os
SS, a polícia militarizada dos
nazistas, o castelo de Wewelsburg, morada sagrada em que
seus agentes se tomavam por
modernos cavaleiros do Graal.
A sala de reuniões foi desenhada a partir dos cenários do primeiro "Parsifal" em Bayreuth.
Novelo
"Parsifal" não apenas gravita
em torno de obsessões universais, como o desejo, a culpa, a
regeneração, o sofrimento, o
poder, o masculino e o feminino. Enleou-se de maneira inextricável com a história alemã.
O jovem diretor de cena norueguês Stefan Herheim criou
a nova e estupenda produção
de "Parsifal" para o festival
Wagner de Bayreuth. Como
também é músico, atenta para
cada sugestão da partitura. Retoma, com meios modernos, a
tradição teatral wagneriana,
fascinada pelas mágicas metamorfoses no palco.
Começa dentro da casa de
Wagner, que existe até hoje: a
casa se transforma em jardim, o
jardim em floresta, a floresta
em templo. Uma cama, lugar de
nascimento, de morte e de prazer, forma o ponto nodal, em
que personagens aparecem e
somem. Estandartes nazistas
se desenrolam com suas suásticas; eles assustam, expondo o
que se buscou esquecer: o passado tremendo daquela ópera e
daquele teatro que se enfeitava
para receber o ditador.
No final, quando tudo está
em ruínas, Parsifal se despe de
sua armadura que o assemelha
à figura emblemática da Germânia; enormes espelhos tremulantes refletem os espectadores no fundo do palco que incorporam a cena. A pomba do
Espírito Santo se muda em signo de paz universal. Herheim,
apoiado na regência lenta e expressiva de Daniele Gatti e em
ótimos intérpretes, trouxe a
História para o palco.
As cinco horas, ou quase, de
"Parsifal" passaram como se
fossem cinco minutos.
Assombro
Titurel, papel breve, mas nevrálgico, em "Parsifal", é interpretado com grande nobreza
por Diógenes Randes: 32 anos,
um sólido contrato com a ópera
de Hamburgo, voz de baixo,
ampla, poderosa, timbrada. É o
primeiro brasileiro a cantar no
mítico teatro de Bayreuth.
jorgecoli@uol.com.br
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