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Como a maior parte das mostras atuais,
Bienal de SP acalenta o sonho de construir
as formas de uma vida nova
e reparar 'as falhas do vínculo social'
A arte além da arte
Jacques Rancière
Logo ao transpor a porta da 26ª Bienal
de São Paulo, o visitante é surpreendido: diante dele, um "Pesadelo de
Jorge 5º" mostra-lhe um tigre atacando um elefante: à sua direita estende-se um
cenário de pirâmides, semelhante às maquetes dos museus de arqueologia; à sua
esquerda, máquinas de costura nas quais
mulheres juntam fios, como para trabalhar
na confecção do cenário que as cerca: quadrados de patchwork nos quais são dispostas imagens urbanas ou rurais em musgo
coberto de tecidos coloridos, que lembram
ao mesmo tempo os bichos de pelúcia e os
jogos de construção infantis, para significar uma interrogação sobre as transformações econômicas e a mutação das identidades na China contemporânea.
Continuando a visita, ele encontrará, entre outras coisas, um barco com vela colorida que evoca a travessia de Portugal ao
Brasil, uma casa de sonhos feita de tecidos,
uma tenda mongol, um "Puzzle Polis 2º"
de um artista de favela, que dispõe, como
numa cidade, lâmpadas em forma de edifícios ou de automóveis; 198 retratos de
camponeses chineses, amontoados como
num grande afresco; uma assemblage de
dezenas de fotografias, representando a sala de estar de malaios de todas as condições, etnias ou religiões; fotografias de uma
pequena cidade polonesa, testemunhando
a miséria pós-socialista; fotografias de lugares sórdidos da América profunda, testemunhando o avesso da prosperidade capitalista; pequenas fotografias de ucranianos de classe média, coladas sobre grandes
cenários "kitsch" de parques floridos com
lagos e cisnes.
É aceito, entre os nostálgicos, que a arte
contemporânea é o reinado do "qualquer
coisa". Esse julgamento é demasiado global para nos instruir. O pretenso qualquer
coisa é sempre alguma coisa, uma mistura
determinada que mostra um dado estado
das relações entre as formas da arte e os objetos, imagens ou costumes da vida ordinária. O que reina na Bienal de São Paulo,
como em tantas exposições contemporâneas, não é a simples fantasia de artistas
que seguem seu capricho. Ao contrário, o
visitante é impressionado pela similitude
das preocupações a que os artistas obedecem e dos procedimentos que empregam,
sejam eles chineses ou norte-americanos,
brasileiros, indonésios ou eslovacos.
Certamente a unidade se deve à escolha
do organizador, que fixou aos artistas por
ele selecionados um tema, o da cidade.
Obsessão pelo real
Mas essa escolha
reflete, ela mesma, uma tendência dominante na arte contemporânea. Essa tendência pode se caracterizar como uma espécie de obsessão ou até mesmo um fanatismo pelo real.
A obsessão pelo real assume várias formas. Pode ser a preocupação em testemunhar o estado do mundo por meio da objetividade da máquina fotográfica que nos
restitui exatamente os cenários da vida ordinária em tempos de globalização.
Pode ser o desejo de mesclar as imagens
da cultura cotidiana ou os objetos da arte
popular com os dispositivos conceituais
dos artistas. No Rio de Janeiro, simultaneamente, a exposição "Tudo É Brasil" [que
estréia em SP, no Itaú Cultural, em 9/11],
mostrava o sonho insistente de uma arte
brasileira de unir o modernismo construtivista às formas da arte ou da cultura popular, seja como grandes quadros abstratos
feitos de uma multiplicidade de dominós
ou peças de bola de futebol, seja como
obras em vídeo que recolhem a arte dos
grafites e das pinturas de rua.
É ainda a vontade de fabricar verdadeiros objetos, objetos livres da irrealidade da
tela pintada ou da mediação da reprodução fotográfica e que imponham imediatamente sua realidade nas três dimensões do
espaço: uma casa, uma tenda, um barco...
Como se a recusa do simulacro da representação tivesse tomado a direção oposta
daquela que marcou a arte do tempo de
Malevitch ou de Mondrian: não mais a tela
abstrata, mas o objeto verdadeiramente
existente como objeto do mundo.
No "Crátilo", Platão evocava o limite ao
qual tende a semelhança e no qual se arrisca a se abolir. Esse limite é o objeto absolutamente semelhante ao modelo, a cópia
que não mais se distingue da coisa real.
Cratilismo ficou sendo desde então o nome dessa tentativa de fazer do signo ou da
imagem não mais um índice ou uma cópia
da coisa, mas a coisa mesma. E não há dúvida de que o cratilismo está presente nesta
bienal assim como em muitas manifestações da arte contemporânea.
Mas a obsessão pelo real é também a do
ato que intervém diretamente na realidade
social. Nas paredes das exposições contemporâneas vêem-se com freqüência fotografias ou vídeos que comprovam tais
intervenções: provocações de um Gianni
Motti imiscuindo-se, numa mise-en-scène
de ficção política, no núcleo dos segredos
de Estado, ou de um Santiago Serra que paga subproletários mexicanos para que imitem sua exploração, cavando seu próprio
túmulo. Não é de provocação que se trata
na obra de um artista cubano apresentada
na Bienal. Com um grupo de artistas, ele
destinou o dinheiro de uma fundação artística a uma pesquisa sobre as necessidades dos habitantes de um bairro pobre.
Mas não basta pesquisar as necessidades.
É preciso também responder a elas. O vídeo de René Francisco nos mostra os artistas/ artesãos ocupados em refazer o telhado de zinco e a pintura na casa de um velho
casal, cuja sombra na tela os observa.
Será isso arte, perguntarão os estetas?
Aqui também a questão está mal colocada.
Pois a arte moderna inteira foi habitada pela preocupação de sair de si para tornar-se
uma forma de intervenção que transforme
a realidade mesma das coisas. Os pioneiros
de uma pintura abstrata, reduzida à sua essência de assemblage de formas coloridas,
foram também os paladinos de uma arte
que é mais que uma arte, que se transforma numa espécie de vida comum. Não
mais fazer "pintura", como realidade separada, mas construir as formas de vida e o
mobiliário de uma vida nova -tal foi o sonho comum a Mondrian e a Malevitch. Tal
foi a base da adesão da vanguarda artística
à criação da "vida nova" soviética.
O que é novo e significativo, portanto,
não é a vontade de uma arte que saia de si
mesma para agir diretamente no mundo. É
a forma hoje assumida por essa vontade,
uma forma de assistência individual aos
mais desfavorecidos que tanto as vanguardas artísticas como os construtores do socialismo rejeitavam até pouco tempo atrás.
O sonho de uma arte que construa as formas de uma vida nova tornou-se o projeto
modesto de uma "arte relacional": arte que
busca criar não mais obras, mas situações e
relações, e nas quais o artista, como diz um
teórico francês dessa arte, presta à sociedade "pequenos serviços" próprios a reparar
"as falhas do vínculo social".
A ironia é que essa estética da arte como
serviço social seja particularmente representada na Bienal por artistas provenientes
dos últimos países que invocam o socialismo marxista.
Não é muito proveitoso pôr em causa a
ingenuidade dos artistas ou a esperteza dos
organizadores. Pois essa obsessão pelo
real, essa vontade febril de "fazer" algo que
seja um objeto sólido, uma ação efetiva ou
um testemunho sobre o estado do mundo,
reflete também a posição singular da atividade artística num mundo onde tendem a
se apagar não apenas os grandes projetos
revolucionários mas as próprias formas do
conflito político. O vazio da cena política
incita os artistas e os atores do mundo da
arte a utilizar seus meios e seus lugares para testemunhar uma realidade das desigualdades, das contradições e dos conflitos
que o discurso consensual tende a tornar
invisíveis e a opor suas propostas de intervenção ao fatalismo reinante.
O problema é que esse esforço indiscutível de muitos artistas para romper o consenso dominante e questionar a ordem
existente tende a se inscrever, ele próprio,
no quadro das descrições e das categorias
consensuais, reduzindo o poder artístico
de provocação às tarefas éticas de testemunho sobre um mundo comum e de assistência aos mais desfavorecidos.
Jacques Rancière é professor na Universidade de
Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed. 34). Acaba de lançar na França "Malaise dans l"Esthétique" (Mal-Estar
na Estética, ed. Galilée). Ele escreve regularmente na
seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Paulo Neves.
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