São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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Coletânea discute a formação das elites brasileiras, avaliando seu domínio de línguas estrangeiras, a inserção no mercado e a atuação das agências de fomento à pesquisa

O jogo de poder da inteligência

Beatriz Resende
especial para a Folha

Neste mês a comunidade acadêmica nacional que se ocupa de pesquisa e ensino na pós-graduação está sendo sacudida, como acontece de três em três anos, pelos resultados da avaliação de seus cursos pela Capes, órgão do Ministério da Educação que tem como função fornecer subsídios para a definição dos planos e políticas de desenvolvimento da pós-graduação no país. Neste triênio foram avaliados 2.861 cursos de mestrado e doutorado. Não é pouca coisa num país onde a preocupação com a fome ainda é grande. A avaliação atribui notas aos programas, o que define apoios econômicos e outras formas de estímulo. Começa então o sobe ou desce de conceitos, provocando choro e ranger de dentes, egos inflados e competições regionais acirradas. Os conceitos mais elevados, notas seis e sete, definem o que é considerado um "centro de excelência". Poucos, atualmente. Para obter essas notas é preciso um desempenho "equivalente ao dos mais importantes centros internacionais", seus docentes devem comprovar "alto nível de inserção internacional" e, para chegar ao sete, constituírem-se em "expoentes de projeção internacional". Não poderia vir em melhor hora, portanto, o conjunto de ensaios publicado pela editora da Unicamp dando conta da "Circulação Internacional e Formação das Elites Brasileiras", organizado por Ana Maria Almeida, Letícia Canêdo, Afrânio Garcia e Agueda Bittencourt. Os termos "elites brasileiras" e "elites dirigentes" aparecem, de saída, como questão provocativa: até que ponto essas elites de circulação internacional -para as quais títulos, diplomas, saberes, competências adquiridos em estadias e cursos no exterior são decisivos- são mais do que elites intelectuais? Qual sua verdadeira inserção no jogo do poder, associado sempre à política partidária e aos interesses econômicos? Diante desta complexa correlação de forças, vale conferir o "valor" diferenciado das diversas línguas, estudado por Ceres Prado ao tratar do intercâmbios e a constatação de que a presença de línguas estrangeiras -basicamente o inglês- se reduziu quando a ampliação do números de escolas permitiu o acesso das camadas populares ao ensino nos diversos níveis. A conclusão é que o ensino de línguas estrangeiras é fator decisivo para o sucesso escolar e profissional mas é também fator diferenciador das desigualdades da educação.

Ação do Estado
Quando Odaci Coradini trata do ponto de vista do professor, analisando os trajetos realizados em estudos no exterior, não se afasta das observações anteriores: essa experiência é pouco positiva quando o estudante ou profissional da educação "têm origens mais periféricas" ou dispõe de "um menor capital escolar". Investigando o papel das agências de fomento, Carlos Roberto Cury verifica que, mesmo sem a força inicial, os programas de formação no exterior, que já obtiveram êxitos inegáveis, são considerados importantes pela comunidade científica -que partilha do consenso de que "não há autonomia intelectual e científica no país sem pesquisa básica qualitativa". Essa política, porém, é unicamente uma ação do Estado, com ações inexpressivas de organismos da sociedade civil ou de instituições de ensino particulares. Tais conclusões, assim como as pesquisas sobre o acolhimento de nossos estudantes no exterior, a proporção de bolsistas homens e mulheres e o "valor" de um MBA como "brevê de internacionalização" merecem atenção, pois colocam em evidência diversos dilemas com que nos deparamos ao avaliarmos ou sermos avaliados, no âmbito da vida acadêmica e no espaço do mercado.

Exílio
O principal deles talvez seja a constatação de que o Estado forma profissionais que, quando bem preparados, são disputados por um mercado de trabalho em que o próprio Estado tem um papel inferior. As universidades públicas capacitam seus estudantes com êxito, mas não têm condições de absorvê-los adequadamente, não oferecendo postos de trabalho suficientes para que o conhecimento recebido seja socializado e multiplicado.
Finalmente, merece atenção o original exame que Afrânio Garcia faz da contribuição de exilados brasileiros, no período do regime militar, à construção dos Estados emergentes na África e à criação de universidades após os movimentos de libertação. A análise dessas experiências pode nos servir em muito se nos dispusermos a refletir sobre questões como a importância da diversidade de paradigmas no plano internacional e o quanto, como diz o antropólogo, "competências pretensamente "universais", "globais" ou "mundiais" devem a seus contextos de aquisição originais".


Beatriz Resende é professora da UniRio e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autora de "Apontamentos de Crítica Cultural" (DNL/Aeroplano), entre outros livros.

Circulação Internacional e Formação das Elites Brasileiras
320 págs., R$ 28,00 Ana Maria F. de Almeida, Letícia Bicalho Canêdo, Afrânio Garcia, Agueda Bernardete Bittencourt (orgs.). Ed. Unicamp (caixa postal 6.074, Cidade Universitária, CEP 13083-892, Campinas, SP, tel. 0/xx/19/3788-7235).



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