|
Texto Anterior | Índice
Ponto de fuga
Doce escuro
Jorge Coli
especial para a Folha
"O seqüestro foi assim." O ator se serve de uma pasta de
couro, quadrada, com a forma de um livro avantajado. "O
chofer estava aqui." Mostra com o dedo. "O outro se sentou aqui." "O general entrou por esta porta." "Quando eu
fui abrir a minha, estava travada. O carro partiu."
Em seu filme "Agente Triplo", apresentado no Festival
de Cinema do Rio de Janeiro, é assim, pouco mais ou menos, que Rohmer cria uma cena de ação. Não há flashback,
não há violência visual. A pasta, o dedo, as palavras adquirem existência intensa. Tornam-se verdade cinematográfica, mas guardam consigo a possibilidade traiçoeira de
que essa persuasão seja mentirosa.
No início, um letreiro avisa, com delicadeza, que o filme
se inspira em "um acontecimento verdadeiro, ainda não
inteiramente elucidado". Testemunho, convicção e suspeita são inseparáveis: eles formam o instrumento essencial para sondar o que passou. A História, com "H" maiúsculo, desenha, no filme, o lugar das verdades não reveladas. Vem focalizada num momento agudo, quando os falsos semblantes e os blefes se precipitam, graças ao pacto
germano-soviético.
Mas há também a força dos laços pessoais, inscrita na expressão dos afetos, nas intensidades eróticas, exasperada
por um gesto ou uma roupa. Há a intuição de cada um sobre o sentido das coisas, fundando-se em crenças e, por isso mesmo, sujeitas às traições. Há a sinceridade do amor e
o cinismo do cálculo, a confiança ideológica e o oportunismo político. O cinema de Rohmer filma o invisível, um invisível densamente povoado. As imagens na tela parecem
acidentais, como indícios desse invisível maior.
Latências - Dario Argento tem o mais terrível surrealismo
nas veias. Não por uma filiação intencional ao movimento, mas porque há, nesse diretor, uma fatalidade de ser
surrealista. Em "Il Cartaio" (O Jogador de Cartas), sempre
no Festival de Cinema do Rio, Argento constrói sua história a partir dos esquemas rocambolescos dos "serials";
chega a incluir uma cena em que a heroína é algemada nos
trilhos de um trem, na melhor tradição de Pearl White e
"Os Perigos de Pauline".
O jogo com formas de narração cinematográficas, antigas e populares, desconcerta o público de hoje e mesmo alguns fiéis admiradores. Argento desdenha a verossimilhança do "plot" para investir em angústias desesperadas,
nas quais morte e arbitrário vão de par.
Passado - Outro filme, do mesmo festival: "Os Sonhadores", de Bernardo Bertolucci. Faz uma incursão pelos tempos esperançosos de 1968, pela memória desses tempos.
Traz uma luz que contrasta com o horizonte cinzento dos
impulsos e dos afetos vividos hoje em dia. Sexualidades
são descobertas e exploradas com fascínio e com inocência. Eclodem pulsões libertárias, libertinas, destinadas a
todas as juventudes. É, no entanto, proibido para menores
de 18 anos.
Bisturi - "Non Ti Muovere" (Não Se Mova), filme italiano
de Sergio Castellito, ainda no Festival de Cinema do Rio de
Janeiro: melodrama como não se faz mais, com a emoção
levada ao extremo das lágrimas. Sem imitar, sem citações,
sem referências ou intenções intelectuais. Penélope Cruz,
"the latest latino actress with sexy legs and luscious lips" [a
última atriz latina com pernas sexy e lábios suculentos],
como diz um site, explode seu gênio interpretativo, quase
feia, num personagem sofrido.
Praia - As delirantes produções de Bollywood compartilham as telas com uma crônica de sentimentos delicados,
feita na Noruega, ou com o as cenas resplandecentes de
Zhang Yimou, em "Herói". Pode-se passar dos Sérgio Leone ao último Rivette. O extraordinário "Contra Todos", de
Roberto Moreira, sai premiado. No Festival de Cinema do
Rio de Janeiro, o hedonismo é múltiplo. A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, séria, sisuda, intelectual,
paulistana, tem o mérito de trazer produções raras de países distantes, feitas por diretores impronunciáveis.
No Rio, o mote do festival deste ano foi "cinema da cabeça aos pés". A de São Paulo deveria ser: "Festival do filme-cabeça".
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: Estudioso tem outra obra lançada no Brasil Índice
|