|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ sociedade
Banalidade do mal e fantasia telenovelesca
Reações conservadoras ao "caso Suzane"
ignoram que a família burguesa foi o grande
caldo de cultura do sofrimento mental moderno
|
Maria Rita Kehl
especial para a Folha
"Toda época que tem medo de si mesma tende à restauração"
Thomas Mann
Por que o parricídio nos mobiliza
tanto? A mim, que entre outras
coisas sou mãe, parece mais hediondo o crime do pai ou da mãe
que assassinam os seres a quem deram a
vida. O marido traído que mata a mulher
e as crianças num acesso de ciúmes. A
mulher abandonada que se atira do décimo andar levando junto o filho de três
anos. O desempregado que espanca o
bebê até a morte porque não suporta ouvir o choro dele. Por que esses crimes nos
parecem menos hediondos do que o do
filho ou filha que mata seus pais?
Talvez porque as leis sejam feitas pelos
pais, para proteger a sociedade que se representa como sociedade dos adultos, na
qual crianças e adolescentes estão se preparando para ingressar; o amor obrigatório a pai e mãe é o quarto dos dez mandamentos. Talvez porque resquícios inconscientes de séculos de pátrio poder
nos façam crer que, no fundo, esse seja
um direito a que os pais podem recorrer
-em casos-limite. Ou porque o adolescente, "enfant gaté" da cultura de massas, sempre nos pareça ameaçador.
Tranquilizar os leitores
Do crime
da rua Zacarias de Góis, em São Paulo,
pouco podemos explicar. Não o vejo como "sinal dos tempos". Não revela, necessariamente, a falta de limites dos jovens de hoje -se assim fosse, teríamos
dois desses por dia, no mínimo. Aliás,
não temos testemunhas confiáveis para
saber como Manfred e Marísia von Richthofen educavam seus rebentos. É um
crime típico, diz reportagem da Folha de
10/11: conflito familiar, motivos fúteis,
sem armas de fogo. Típico e, ao mesmo
tempo, extremo.
Interessa-me sua "recepção", que se revela nas tentativas da imprensa de tranquilizar a opinião pública com explicações de especialistas. Como a família
Richthofen pode ser identificada com
grande parte das famílias de classes A e B
brasileiras, trata-se de buscar rapidamente causas que tranquilizem a elite
dos leitores de jornais e revistas. Se a explicação é a falta de autoridade ou omissão paternas, todos os casais que não pecam por desleixo ou excesso de liberalismo podem respirar aliviados: na "nossa
família" isso não vai acontecer.
Pais unidos, filhos na escola
O
confronto com o horror incompreensível suscita reações conservadoras. Culpa-se a dissolução familiar, típica da modernidade tardia. Mas aquela não era
justamente uma família dita "bem estruturada"? Pais unidos, filhos na escola,
educados dentro de limites aparentemente claros: pois não foi a consistente
oposição do casal ao namoro de Suzane
com um rapaz de uma classe mais baixa,
desempregado, que deflagrou a tragédia?
A reação conservadora não parece levar em conta esse fato. Como não parece
levar em conta que a família burguesa
"bem constituída", monogâmica, incestuosa e claustrofóbica, foi, durante os
dois séculos de sua vigência, o grande
caldo de cultura do sofrimento mental
moderno.
Não foi por coincidência que a psicanálise surgiu na segunda metade do século 19, quando as famílias "bem estruturadas" estavam em seu apogeu e a autoridade paterna se erguia, no espaço
privado, como substitutivo simbólico de
outro "pai" que, na pré-modernidade,
costurava o laço social e organizava o espaço público: Deus e seus representantes
terrenos, a igreja e o monarca.
Não foi por acaso que as formas de
mal-estar típicas da modernidade -o
sofrimento neurótico, as inibições, a culpa pelas fantasias recalcadas de incesto e
parricídio- tenham se revelado ao ouvido sensível do dr. Freud em plena vigência da família vitoriana. Também não
é coincidência que o parricídio seja um
dos pilares que sustentam a teoria psicanalítica: Édipo, Totem e Tabu.
Não podemos conhecer, com base no
noticiário, as mentes de Suzane von
Richthofen e [seu namorado] Daniel
Cravinhos de Paula e Silva. O crime lembra casos de "folie à deux" [loucura a
dois], em que uma parceria erótica e/ou
passional funciona de modo a ativar e
autorizar o que existe de mais perverso
nos parceiros -pessoas que, fora do laço amoroso, pareciam mais ou menos
"normais". A paixão correspondida deixa os sujeitos mais em paz com seu próprio superego. A idealização sexual do
parceiro ajuda a suspender parcialmente
o recalque que inibia os excessos e produzia o bom comportamento dos amantes, antes de se conhecerem. A cultura
consente que os apaixonados cometam
algumas loucurinhas, algumas extravagâncias a mais.
Só que às vezes a coisa vai longe demais. Depois de um crime como esse, é
frequente que os membros do casal, separados na prisão, não se reconheçam
no que fizeram. Como se a dupla, unida
pelo laço perverso, formasse uma entidade à parte, com vida própria, capaz de
atos que cada parceiro, separadamente,
não ousaria cometer. "Folie à deux."
Estupidez comum
O que me aterroriza quanto ao suposto panorama
mental de Suzane é a estupidez comum
da moça. Se é para pensar o crime como
"sinal dos tempos", não podemos dissociá-lo dos efeitos da cultura de massa na
nossa sociedade. Vazios de pensamento
+ alienação a um Outro, emissor de sentidos (banais) para a existência = banalidade do mal.
O crime é estúpido como o enredo que
o motivou; não tanto a rebeldia adolescente contra pais tirânicos (parece que
não eram assim), mas a fantasia telenovelesca do casal apaixonado que vai dissipar a herança dos pais numa vida de
beira-de-piscina. Se de alguma forma esse crime diz respeito ao resto da sociedade bem comportada, é pelo viés da falta
de sentido nos projetos de vida tipo "topa tudo por dinheiro", que os adultos
têm apresentado às novas gerações.
Um último comentário: percebo uma
tentativa de analisar o "caso Suzane" e a
descoberta do sequestro de Pedrinho pela mãe adotiva como se fossem faces de
uma mesma moeda. Não vejo relação.
Mesmo porque o sequestro, descoberto
agora, aconteceu 16 anos atrás.
Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora
de "Sobre Ética e Psicanálise" (Companhia das Letras), entre outros.
Texto Anterior: Grupo reuniu de teólogos a especialistas em inflação e direito Próximo Texto: + autores: A FUGA PARA A FRENTE Índice
|