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EXCLUSIVO E FICTÍCIO
A onipresença da decomposição
Guillermo Arias - 29.nov.2003/Associated Press
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Rubem Fonseca (esq.), ao lado do colombiano García Márquez, depois de receber o Prêmio de Literatura Juan Rulfo, no México |
RUBEM FONSECA
EXPLICA SUA OBSESSÃO
PELO GROTESCO
E CONTA DETALHES DO NOVO ROMANCE
Maurício Santana Dias
especial para a Folha
A entrevista havia sido marcada para as 16h,
no apartamento do escritor. A famosa atitude esquiva de Rubem Fonseca, 78, e a insistência com que sempre negou qualquer
contato com a imprensa faziam aumentar a expectativa do encontro. Na sala espaçosa não havia ninguém, só o concerto de cordas de Penderecky "Em
Memória aos Mortos de Hiroshima", que contrastava com a paisagem marítima da janela.
Fonseca, ou melhor, o dono da casa, Zé Rubem,
veio de um corredor escuro para a sala às 16h13,
desligou a aparelho de som e se desculpou pelo pequeno atraso. Muito magro, extremamente gentil,
sentou-se na poltrona em frente e fez uma expressão de quem estava esperando alguma iniciativa de
minha parte -iniciativa que não houve. Então, para quebrar o silêncio, pediu licença para tomar uma
pastilha de antiácido, que sacou do bolso esquerdo
da camisa.
Por onde começar? O roteiro preparado para a
entrevista se embaralhou de repente e, a partir daí,
a conversa poderia tomar qualquer rumo -o que,
do ponto de vista jornalístico, não seria recomendável. Finalmente, na falta de coisa melhor, surge a
pergunta banal: "O senhor está escrevendo algum
livro?". Após alguma hesitação, para minha surpresa, Fonseca começou a falar do romance em que estava trabalhando e que provavelmente se chamará
"Março". Depois disso, sempre com a voz suave,
mas firme, o entrevistado enveredou por caminhos
que misturavam política, kitsch, violência, deformidade, doenças, decepções e, é claro, a "arte" de
escrever com e sobre tudo isso.
O sr. acaba de dizer que está escrevendo um romance que deverá se chamar "Março". O primeiro conto
do seu primeiro livro se intitulava "Fevereiro ou
Março". O novo livro o retoma aquele ponto de partida?
Na verdade, não. É uma mera coincidência
-aliás, isso nem tinha me ocorrido. Se há uma
associação possível com algum livro anterior
meu, seria mais com o romance "Agosto"
(1990), que trata do último mês da vida de Vargas e do comissário Mattos. No novo livro eu
dou um salto de dez anos, os personagens vivem
ainda no Rio de Janeiro, em março de 1964, às
vésperas do golpe militar. Há figuras da política
da época, banqueiros, prostitutas, diplomatas,
militantes de esquerda, torturadores (fictícios e
reais), jornalistas. Mas isso é só a casca das coisas. Sempre acho essas explicações desnecessárias -afinal, elas de nada serviriam. Só posso
dizer que estou entusiasmado com o livro.
Há algum investigador nesse novo romance? Um
"comissário Fonseca", por exemplo?
É claro que sim! Mas eu nunca emprestaria meu
nome a um comissário de polícia (risos). Aliás,
já estou até pensando em mudar o título do livro
para "Galeão", a fim de evitar mal-entendidos.
O tratamento da violência e o gosto pelo escatológico, pelo grotesco, foram desde sempre uma marca
de sua obra. Penso no conto sobre Franz Potocki,
pintor de um "Getúlio Podre", que está em seu livro
de estréia. A tendência se consolida com o tempo,
até "Secreções, Excreções e Desatinos" (2001). De
onde vem essa fixação?
Sei lá. Talvez porque eu tenha lido a "Psychopathia Sexualis" do Krafft-Ebing em "tenra idade",
como se diz. Mas o fato, a meu ver incontestável,
é que vivemos cada vez mais rodeados de dejetos e deformidades de todo tipo. Não falo metaforicamente, embora a metáfora também se
aplique ao caso. Basta abrir um jornal ou fazer
um passeio noturno para topar em cada canto
com a matéria excrementícia. Nossa imaginação, principalmente a de quem vive nas grandes
cidades, está sobrecarregada de massacres. Veja
agora essa guerra suja no Rio. Penso também na
exibição dos corpos de Vigário Geral ou dos 111
mortos do Carandiru e associo essas imagens,
por absurdo que possa parecer, à exposição dos
cadáveres no museu alemão ou a outra, que vi
há mais tempo, num museu de Londres: um
porco apodrecendo dentro de uma caixa de vidro, a decomposição incorporada ao cotidiano
como realidade e espetáculo.
Mas Rembrandt já fazia isso há mais de 300 anos -na
"Aula de Anatomia do Dr. Tulp", por exemplo.
É diferente. Hoje estamos vivendo na colônia penal
de Kafka. Mas, como a oferta de entretenimento, psicofármacos e estupefacientes é imensa, não nos damos conta disso. Estamos condenados a nos divertir
sem parar, como o rei de Pascal. Às vezes me sinto
como se estivesse preso num gigantesco parque de
diversões, um zoológico humano.
E não vê saídas possíveis? Isso não é muito fatalista?
Sinceramente não consigo ver saídas no horizonte.
Nem no campo político nem no religioso nem no
ético nem no artístico. Talvez porque minha visão
esteja provisoriamente bloqueada, não sei... Tenho a
impressão de que estamos todos meio perdidos,
atordoados. Às vezes me pego dando risada com a
idéia blasfema de que Deus, ao fabricar o homem,
pegou o barro do vaso errado. Brincadeiras à parte, o
escritor sempre trabalha com os materiais de sua
época, mesmo quando fala do passado ou do futuro.
E o nosso mundo é excessivamente violento, vulgar,
feroz até a banalidade. Mas eu nunca quis fazer apologia da violência ou do kitsch. Isso é bobagem de
crítico obtuso. O que mais me interessa é explorar
como esses elementos podem ser processados pela
ficção, a possibilidade de transfigurá-los, de ampliá-los a tal ponto que já não seja mais possível observá-los pacificamente: em lugar da imagem "realista" ou
"hiper-realista" -como muitos críticos me classificaram-, apenas o granulado da foto.
Mudando de assunto, o que o sr. está achando do atual
governo?
Prefiro não comentar o tema.
E como tem acompanhado a recente onda de terrorismo?
Olha, o impulso de destruição, assim como o de criação, sempre existiu. Só que hoje os meios disponíveis
são tão potentes que os resultados nos assombram
cada vez mais. Para piorar as coisas, o regime de capitalismo único tem acentuado as desigualdades, há
essa propaganda que joga ocidentais contra orientais como se estivéssemos assistindo a um Fla-Flu, e
os atuais dirigentes políticos -penso especialmente
em Bush e Berlusconi- não são indivíduos particularmente dotados.
Gostaria que o sr. citasse alguns escritores que o influenciaram mais diretamente.
A lista é grande, não caberia numa entrevista (esse é
um dos motivos por que não gosto de entrevistas).
Tudo bem, vou citar três: Chandler, Beckett e Nelson
Rodrigues. Ah, e Conrad! Mas também continuo
gostando muito das canções dos Beatles.
Qual a sua opinião sobre os novos escritores brasileiros,
os que começaram a escrever dos anos 80 para cá?
Não acho que a literatura brasileira esteja passando
por um mau momento. Vejo muitos autores jovens
com grandes qualidades. Sem querer citar nomes,
gosto especialmente daqueles que ainda sabem escrever com raiva e paciência, precisão e rapidez
-como um bom lutador.
Isso me lembra o conto "Desempenho", do livro "Lúcia
McCartney".
É mais ou menos por aí. Mas sem perder de vista
uma certa auto-ironia, senão corremos o risco de
cair no clichê, na banalidade, que é a cova rasa de
qualquer artista. O texto tem que agir como um
murro no queixo do leitor, como dizia o argentino
Arlt; mas o golpe, para funcionar, tem que ser dado
com alguma ternura, com a consciência da fragilidade dos lutadores.
Um de seus personagens diz que a literatura é uma espécie de doença...
Bem, se a literatura é uma patologia, só posso concluir que não se trata de uma doença mortal. Já estou
perto dos 80 anos, portanto sobrevivi a ela, e graças a
ela estamos tendo esta conversa.
Mais uma vez, e para concluir: por que essa recusa sistemática em conceder entrevistas?
Porque tudo o que eu tinha a dizer, tenho a dizer, já
está nos meus livros. O resto é blablablá.
Maurício Santana Dias é professor de literatura italiana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
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