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EXCLUSIVO E FICTÍCIO
Purgatório de clichês
O SUL-AFRICANO J.M. COETZEE LAMENTA O EQUÍVOCO
DA COLONIZAÇÃO DE SEU CONTINENTE
E EXPLICA O DILEMA DO ARTISTA EM "ELIZABETH COSTELLO"
Marcelo Pen
especial para a Folha
A romancista Elizabeth Costello, personagem de
livro homônimo, recém-lançado no Brasil, viaja aos lugares mais remotos (e até em um transatlântico de luxo), a fim de ministrar palestras.
Ao contrário dessa "velha artista itinerante", seu criador, o sul-africano J.M. Coetzee, 64, é uma figura bem
menos acessível.
Desde 2002, após ter se aposentado pela Universidade
da Cidade do Cabo, na África do Sul, passa metade do
ano na Austrália, por cuja paisagem sentiu-se atraído, e
metade nos Estados Unidos. Ganhou duas vezes o Booker Prize, a principal honraria literária britânica. Em
2003, foi agraciado com o Nobel de Literatura.
Tem o hábito de só responder a (pouquíssimas) entrevistas por e-mail, como a que a Ilustrada publicou na
quarta-feira passada, usualmente selecionando questões. Por vezes, "recicla" respostas, retirando-as de colóquios passados e enviando-as a seus novos solicitadores. Recusa-se a falar sobre sua vida pessoal. Sabe-se que
é divorciado, tem uma filha e é vegetariano. Nunca esclareceu o significado do M. de seu nome. Pode ser Michael ou Maxwell. J. é de John. Escreveu duas obras biográficas -"Boyhood" ("Cenas de Uma Vida") e
"Youth" (Juventude) -usando a terceira pessoa verbal
(o "eu" vira "ele").
Não foi fácil conseguir entrevistá-lo, por assim dizer,
ao vivo. Foram necessários vários e-mails, cartas e horas de "tocaia" na Universidade de Adelaide, Austrália,
onde ele leciona. Talvez a menção a Henry James e a
Ford Madox Ford, suas primeiras influências, logo
abandonadas, no campo da prosa, tenha ajudado.
O ritual do encontro é rigoroso. O entrevistado só responde às perguntas por escrito. As respostas, depois de
lidas e anotadas, devem ser devolvidas a seu autor. Por
um princípio de equilíbrio, o entrevistador decide, a
despeito de já conhecer as questões de memória, redigi-las uma a uma, à medida que as vai formulando.
Trava-se, assim, uma conversação silenciosa, durante
a qual o ruído mais comum é o do surdo raspar da caneta sobre o papel. Há pouco intercâmbio oral durante a
entrevista (assinalado abaixo) e mínimas expressões de
cortesia ou de emoção (também assinaladas).
Quando Coetzee chega à sala ampla e desornada, o
entrevistador o está aguardando. O escritor não estende
a mão. Com um gesto curto de cabeça, à guisa de cumprimento, senta-se do outro lado da mesa de fórmica,
colocando à sua frente uns papéis e a caneta. Não parece
aborrecido nem animado. Imagina que se espera uma
"performance" dele, e isso o aborrece. Às vezes relaxa e
é como se uma luz bruxuleasse em seu rosto magro.
Mas a chama logo se apaga. Ele preferia não estar ali.
Quem sabe não pode enviar Elizabeth em seu lugar?
O senhor iniciou-se no ofício literário pela poesia, que
não levou adiante. Quando optou pela prosa, seus modelos foram Henry James e Ford Madox Ford. Por quê?
Não gosto da palavra "modelo". Na época, eu lia
[Ezra] Pound com intensidade, e ele dizia que James
e, depois, Joseph Conrad e Ford foram os seguidores
de [Gustave] Flaubert, o grande gênio do romance.
Escrevi uma tese pouco original sobre Ford, que produziu obras interessantes, como "O Bom Soldado"
[ed. 34], e outras muito ruins. Tentei escrever à moda de James, sobre minúsculos deslocamentos de
poder, mas me faltou sensibilidade e também confiança em sua técnica discursiva. Admirava-lhe a capacidade de ir além da mera nacionalidade.
[Em voz alta] Pode explicar melhor?
[Olha para cima e, após longa pausa, torna a redigir] Em muitas de suas histórias, não sabemos bem
onde a ação se passa. O cenário realista é irrelevante.
No final de "Elizabeth Costello", a escritora está num lugar que ela identifica com o purgatório. Quando o senhor
descreve John, em "Juventude", diz que ele, na condição
de aspirante a poeta, espera "a luz da arte" no purgatório da inadequação e da angústia. O purgatório seria o
território, por excelência, do artista?
John sente que não foi abençoado pela chama da
criação, pela grande força universal que não tem nome. Elizabeth é uma artista consagrada, obrigada de
súbito a declarar suas crenças. A cidade onde se encontra é um "purgatório de clichês", como ela define, algo de gênero sub-Kafka. Ela não consegue citar
uma única crença duradoura e, por isso, acaba indefinidamente presa a esse local de inquirição. Mas o
importante, para a autora, é permanecer coerente
com suas fidelidades especiais, que se relacionam
com sua arte. Esse é o verdadeiro teste do artista.
Mesmo quando a própria arte se volta contra ele.
Mas Elizabeth tem alguns princípios bem concretos, como seu vegetarianismo, que a leva a combater a "indústria de processamento de carne".
Não se trata de uma crença definitiva, e, além do
mais, é bem provável tratar-se de um princípio imanente à sua arte. Diante do portão que dá para a luz e
por onde não lhe permitem a passagem, ela vê um
velho cão. Pensa no anagrama "god-dog" e o descarta como sendo literário demais. Outro clichê.
Esse país-purgatório não teria uma relação com a África
do Sul, que o senhor abandonou a certa altura? De certa
forma não se purga, em suas ficções, a culpa pelas terras
usurpadas aos negros?
[Balança a cabeça; em voz alta:] Não, não. [Pára,
olha pela janela o gramado verde do campus australiano e se põe a rabiscar.] Concordo que o processo
de colonização foi um equívoco. Partiu de um equívoco, dizem. A África sempre pertenceu aos africanos nativos. Já afirmei que a África do Sul era como
um albatroz enrodilhado em meu pescoço. No início, quis fugir dela, enquanto território ficcional
também. Fisicamente, mudei-me para a Inglaterra,
depois para os EUA. Mas como se pode viver sem
um país? A África do Sul era uma ferida dentro de
mim. A questão não era "se" deveria retratá-la, mas
como. Voltei-me para relatos de exploradores norte-americanos e britânicos que aportaram na África no
início do século 19. Minha intenção era atingir a "aura de verdade" que havia nessas narrativas.
O senhor recorre a "porta-vozes" para expressar suas
idéias: Elizabeth Costello, Robinson Crusoe [por intermédio de quem se dirigiu à platéia do Nobel, no discurso de
entrega do prêmio], os exploradores coloniais...
[Apanha o papel com a pergunta inacabada, ergue o
sobrolho.] Os romancistas precisam de seres fictícios
para veicular seus conceitos e emoções. Essas criaturas habitualmente nos levam a escrever o que escrevemos. É o processo de escrever propriamente dito
que permite ao autor descobrir o que quer dizer.
Em "Juventude", o senhor relata ter dificuldade em lidar
com o mundo real, preferindo a matemática pura à física,
por exemplo. Como essa disposição afetou sua obra?
O escritor sente-se mais à vontade no mundo da
imaginação, mas isso não quer dizer que não lide
com a realidade. É ali que a ficção brota, ainda que o
destino dessa floração seja bastante imprevisível.
Por vezes o que tomamos por verdade é ficção, e vice-versa. As coisas raramente são o que parecem ser.
Essa ambigüidade se acentua em suas peças biográficas,
em que o "eu" é "ele", ou seja, outro personagem, embora real. Foi essa sua intenção?
Segundo lorde Chandos, do famoso ensaio de Hugo
von Hofmannsthal, tudo é uma alegoria. Somos todos personagens, eu e você. Quem é este eu, este você? Nenhum eu, nenhum você é mais fundamental
que qualquer outro. Podemos perguntar quem é o
verdadeiro J.M. Coetzee. O que pretende responder
a essas perguntas ou aquele em que você se baseou
para que pudesse formulá-las? Minha resposta é que
ambos são verdadeiros. Ambos. E nenhum. Eu sou
outro. [Nesse ponto, ele alteia ligeiramente o canto
dos lábios, numa tentativa de sorriso, e seu inquiridor sabe que enfim chegou o momento de começar a
entrevista.]
Marcelo Pen é crítico literário e organizador de "A Arte do Romance"
(ed. Globo), de Henry James.
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